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Bob Dylan, 75 anos / A lenda continua na estrada

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Bob Dylan
Foto de Ken Regan
Poster de T.A.

Bob Dylan, 75 anos: a lenda continua na estrada


Músico americano mantém uma projeção invejável e uma carreira imprevisível. Sua única constante é a paixão pelo ao vivo: faz cerca de cem shows por ano


DIEGO A. MANRIQUE
Madri 24 MAI 2016 - 13:59 COT

Bob Dylan chega nesta terça-feira aos 75 anos com a cabeça bem erguida. Recebido na Casa Branca, é citado por juízes e filósofos. Acumula reconhecimentos suficientes para se dar ao luxo de ir receber os prêmios... ou não. Até mesmo Duluth, a cidade de Minnesota onde nasceu, promove uma reconciliação com o filho ingrato. E surge até uma nova oportunidade na ficção audiovisual, já que, com patrocínio da Amazon, a produtora Lionsgate prepara uma série baseada na sua obra.
modus operandi de Dylan não tem nada de normal, mas é amplamente aceito. Desde 1988, ele faz cerca de cem shows por ano. Não age assim por imperativos econômicos, como tantos veteranos da canção, já que os direitos autorais e a participação no lucro dos seus discos lhe permitiriam se aposentar ou dosar suas aparições. Trata-se mesmo de uma opção pessoal: Dylan entende sua existência como uma atualização do ofício do trovador, em perpétuo movimento, mas fechado em sua bolha.
Dylan entende sua existência como uma atualização do ofício do trovado. Faz cem shows por ano
Seu posicionamento inclui também a reinvenção do seu repertório. Nada fez tão mal à sua reputação como os persistentes maus tratos à sua obra ao vivo, agravados por suas carências vocais. Pode-se suspeitar que tampouco Dylan se sinta muito seguro quanto aos seus frutos, já que, após quase trinta anos da sua Never Ending Tour, ele não lançou nem um só álbum gravado ao vivo, apenas singles. Parece haver certo equilíbrio entre as suas misteriosas necessidades criativas e as expectativas do seu público.
Poucos artistas mantêm uma relação tão antagônica com seus primeiros seguidores. Só é possível conceber essa tensão se assumirmos que Dylan foi muito mais que um cantor: nos anos sessenta, carregava a tocha que iluminava a insurgência geracional. Na primeira oportunidade, rejeitou o papel de profeta(algo perfeitamente compreensível, considerando o fim que tiveram Malcolm X, Robert Kennedy e Martin Luther King), o que gerou uma sensação de orfandade entre seus fiéis. Com o tempo, esses discípulos aceitaram a contragosto algumas das suas guinadas: a aproximação com o country, o valor musical dos seus coléricos discos de cristão fundamentalista.
Mas sobra uma ponta de rancor. Felizmente para Dylan, seu rebanho foi se renovando. Incorporaram-se fãs de gerações seguintes, que não compartilham dessa sensação de terem sido traídos nem fazem comparações com o Dylan imperial (1965-66). Livrou-se assim de processos revisionistas: as luminares do feminismo passaram a ignorar seus venenosos retratos das mulheres, tão desprezados nos anos sessenta, enquanto Mick Jagger foi triturado pela misoginia das canções que fazia nessa época.
Dylan alcançou um extraordinário grau de liberdade: move-se nas sombras, restringe as entrevistas, evita se comprometer. Um exemplo de sua ductilidade: o homem que se gabava de ter liquidado o negócio do Tin Pan Alley (a fábrica de standards que nutria crooners e cantoras sentimentais) agora pode se permitir a oferecer sua visão do chamado Grande Cancioneiro Americano.
Rebobinemos! Em 1985, durante uma entrevista por ocasião do lançamento da caixa Biograph, ele alardeava que “o Tin Pan Alley já não existe mais; eu acabei com aquilo”. Aqueles mestres das letras e melodias cederam ao modelo de Dylan, que primava pela autoexpressão e não reconhecia limites em temos de temática ou linguagem. Essa aposentadoria forçada foi uma catástrofe cultural, mas Bob hoje acena com a bandeira branca, ao lançar sua segunda coletânea de standards, unidos pelo tênue fio de terem sido cantados por Frank Sinatra.

Caprichos de estrela

Esses caprichos foram facilitados por sua decisão, em 2001, de se autoproduzir, sob o pseudônimo de Jack Frost. Eliminava assim sua maior dor de cabeça: os sucessivos choques com produtores que pretendiam modernizá-lo. Acelerava o processo de gravação, aproveitando a disciplinada banda dos seus shows, que entende sua ideia do classicismo sonoro e dos arranjos funcionais. Ainda assim, quando concluiu as sessões de gravação no estúdio da Capitol que se materializariam nos álbunsShadows in the Night e Fallen Angels, foi à casa de Daniel Lanois para que este escutasse os resultados. Explicou ao produtor canadense que aquelas sofisticadas canções o haviam comovido quando adolescente. Como assim? Não havíamos combinado que ele era um filho do rock and roll revitalizado pelo folk?
Talvez estivesse reincidindo no seu esporte favorito: reescrever sua biografia. Porém, após o primeiro volume de Crônicas, nunca concluiu a sua prometida trilogia autobiográfica. Fez bem: com as atuais ferramentas informáticas, seus “empréstimos” são facilmente detectáveis. Dado o grau de fanatismo que desperta, foi inevitável a descoberta de dezenas de dívidas de Crônicas Vol. 1com Jack London, Mezz Mezzrow e outras fontes inesperadas (até uma edição da revista Time de 1961!). Na música, seu álibi é aceito; afinal, ele trabalha na tradição folk, onde os achados do passado se reciclam constantemente, embora se espere que o original seja citado. No universo literário, por outro lado, o plágio costuma ser tratado com mais rigor. Mas calma: não há muitas possibilidades de que lhe concedam o Nobel.

MEIO SÉCULO DO TORRENCIAL ‘BLONDE ON BLONDE’

Durante décadas, Dylan fugiu do seu passado. Deixou o campo livre para os piratas, que inundaram o mercado com infinidade de bootlegs. Sua tentativa de parodiar essa obsessão, em Self Portrait, lhe rendeu as piores críticas da sua carreira. Em 1991, seu agente Jeff Rosen o convenceu a competir seriamente nesse terreno e se dedicou a centralizar e enriquecer seu arquivo, acumulando fitas, filmes, fotos e documentos.
Desde então, já saíram 10 maravilhosos volumes da Bootleg Series, além do documentário No Direction Home; apesar de atribuído a Martin Scorsese, o cineasta trabalhou sobre entrevistas previamente realizadas por Rosen.
Dylan não só se desvincula desses projetos como também despreza o marketing moderno e se recusa a publicar versões ampliadas dos seus discos. Completam-se agora 50 anos do torrencial Blonde on Blonde, e não há lançamentos oficiais. A comemoração coube à revista britânica Mojo, que o estampa na sua capa e edita uma recriação de Blonde on Blonde por artistas contemporâneos.
EL PAÍS



Bob Dylan abre a porta do céu literário

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Bob Dylan abre a porta do céu literário

O Nobel de Literatura para o músico é um reconhecimento da revolução cultural dos anos sessenta


DIEGO A. MANRIQUE
Madri 14 OUT 2016 - 08:49 COT



Depois de anos sendo um candidato improvável, Bob Dylan ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. A Academia Sueca justifica finamente: “Por criar novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção norte-americana”. A eleição tem, no entanto, outras leituras: de alguma forma, reconhece a revolução cultural dos anos sessenta, da qual Dylan foi um catalisador essencial. A escolha também será interpretada como um triunfo geracional dos chamados baby boomers.
Revisando a programação do último festival Desert Trip, realizado na Califórnia na semana passada, as pessoas especulavam sobre a relativa importância de cada participante: Dylan, Rolling Stones, Paul McCartney, Neil Young, The Who, Roger Waters. Deixemos de lado fama e vendas: é evidente que só um deles tem categoria de mestre. Uma palavra muito desgastada, mas que aqui se aplica literalmente: todos os demais convidados estudaram os discos de Dylan, desde 1965 ou mesmo antes. As letras de rock mudaram radicalmente a partir de seus primeiros álbuns. Ampliaram sua temática, enriqueceram suas técnicas expressivas, buscaram fôlego poético, se ampliaram. Tem uma frase que diz acertadamente: “Elvis libertou o corpo, Dylan libertou a mente.”
Ele começou roqueiro (escutem Mixed Up Confusion, seu primeiro single, de 1962), mas se mimetizou com o ambiente de Greenwich Village, em Nova York. Transformado em folk singer, logo superou seus preceptores na acidez de suas canções políticas e em seu agridoce repertório amoroso, forjando um cancioneiro pessoal que oscilava entre o surrealismo e monólogos interiores particularmente torrenciais. Avisou sobre a mudança de perspectiva com o álbum Another Side of Bob Dylan (1964). Mas ninguém estava preparado para a tempestade de decibéis que viria no ano seguinte.
Bob Dylan
Malika Favre




Exemplo moral

Dylan também tem sido um exemplo moral. Resistiu às críticas mordazes da esquerda e às vaias ocasionais que vieram na esteira de Like a Rolling Stone. Após liderar – sem pretender – a insurgência juvenil, em 1966 ele saiu de cena justo quando a contracultura saltava da boemia às massas. Priorizou sua família sobre aquela teórica revolução e recebeu sopapos sem cessar. Sua casa de Nova York foi assediada por patéticas manifestações de fiéis que exigiam que tomasse de novo a bandeira da rebelião.
Não fez isso, embora ocasionalmente tenha extravasado sua ira contra a injustiça social (por exemplo, comHurricane e a menos conhecida George Jackson). Insistia em remar contra a correnteza: lançou um disco de retalhos, Self Portrait (1970), possivelmente em resposta à popularidade dos discos piratas que reuniam suas gravações inéditas. O Velho Testamento havia formado seus alicerces culturais, e nos anos sessenta ele visitou Israel e flertou com o sionismo. Ainda com todos esses precedentes, afastou-se do que restava de seu público quando, em 1978, transformou-se num cristão fundamentalista, produzindo poderosas canções de fogo e enxofre. Como se não bastasse a prédica a ouvintes pouco religiosos, ele reforçava seus concertos com sermões apocalípticos cuja leitura – o pintor Francisco Clemente reuniu-os num livrinho de sua editora, Hanuman – ainda gera reações intempestivas.
Já nos anos oitenta, Dylan desistiu de evangelizar sua paróquia descrente. Iniciava uma peregrinação aparentemente marcada pelo desespero profissional. Colocou-se às ordens dos produtores de sucesso que prometiam reaproximá-lo dos compradores de discos: Mark Knopfler, Arthur Baker, Daniel Lanois, David e Don Was; até mesmo se renderia à moda com um descuidado MTV Unplugged(1995). Sofreu uma aterradora etapa de falta de inspiração para compor, que disfarçou com coleções de músicas folclóricas, como Good as I Been to You(1992) e World Gone Wrong (1993). Naquela época, seu filho Jakob tornou-se campeão de vendas à frente da banda The Wallflowers.
Em seguida, Dylan fez turnês com Tom Petty & the Heartbreakers e com os integrantes do Grateful Dead – para quem a empreitada foi especialmente desastrosa (“Ele tocava músicas que nós não tínhamos ensaiado e que ele tampouco dominava”). Mas teve uma revelação, como contou em Crônicas, o único volume publicado de uma prometida trilogia autobiográfica: descobriu uma maneira de reinventar suas canções, sem se importar que parecessem irreconhecíveis. E confirmou sua vocação de músico itinerante. Desde 1988, fez cerca de 100 apresentações por ano, ritmo que nenhum de seus companheiros de rock se atreveu a imitar.
Todas essas guinadas foram acompanhadas de mistério. A maioria das entrevistas de Dylan à imprensa se caracterizam por seu tom evasivo e arisco. Por ser o cantor mais analisado do planeta, objeto de uma imensa bibliografia, ele soube manter muitos segredos sobre sua vida privada. Somente em 2001, graças a uma investigação do britânico Howard Sounes, soube-se que ele esteve seis anos casado com Carolyn Dennis, corista de seu grupo gospel, com quem teve uma filha. Volta e meia ele nos dá uma surpresa que sugere uma mente inquieta, que não pode se deter, inclusive com exposições de pinturas e materiais forjados...

Sem acrobacias

E eis que Dylan resolveu gravar de novo. Nada de acrobacias no estúdio: desdeLove and Theft (2001) ele cuida das próprias produções, sob o pseudônimo de Jack Frost, apoiado por sua banda e alguns amigos. O som e os arranjos são agora formalistas. Desde 1997, os ventos sopram a seu favor. Naquele ano, teve uma pericardite (inflamação do tecido que envolve o coração) que esteve a ponto de mandá-lo ao “encontro de Elvis”. Foi um golpe forte para seus seguidores, que o consideravam quase indestrutível. Isso fez suas excentricidades parecem mais aceitáveis. Do tipo: tocou para João Paulo II? “Tirou dinheiro do Vaticano”. Foram detectados plágios em canções e textos? “Está recuperando autores esquecidos”. Faz propaganda de bancos ou carros? “Faz piada do consumismo de nossa época”. O reconhecimento recebido de Estocolmo confirma que até mesmo o establishment literário rendeu-se às suas idiossincrasias. Um reconhecimento definitivo para uma vida tão intensa e criativa.




ESTRATÉGIA COMERCIAL


Para Dylan, ainda bem que existe Jeff Rosen – o homem que racionaliza sua atividade e organiza suas turnês. Desde 1991, Rosen confecciona a Bootleg Series, já com 12 edições: minuciosos resgates de performances diretas e filmagens alternativas que antes eram território exclusivo de piratas. Rosen tem adquirido material gráfico e fitas de áudio e vídeo para diferentes projetos: dizem que realizou as entrevistas do documentário No Direction Home, que logo depois Scorsese se encarregaria de montar. Assim, alternam-se os discos frescos com os históricos: este ano será a vez de Fallen Angels, a segunda parte de sua homenagem a Sinatra com uma amostra integral dos turbulentos concertos de 1966.

EL PAÍS




Roberta Flack / Killing me softly

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Roberta Flack 
KILLING ME SOFTLY
by Charles Fox  and Norman Gimbel  

Strumming my pain with his fingers
Singing my life with his words
Killing me softly with his song
Killing me softly with his song
Telling my whole life with his words
Killing me softly with his song

I heard he sang a good song, I heard he had a style
And so I came to see him to listen for a while
And there he was this young boy, a stranger to my eyes

Strumming my pain with his fingers
Singing my life with his words
Killing me softly with his song
Killing me softly with his song
Telling my whole life with his words
Killing me softly with his song

I felt all flushed with fever, embarrassed by the crowd
I felt he found my letters and read each one out loud
I prayed that he would finish but he just kept right on
Strumming my pain with his fingers

Singing my life with his words
Killing me softly with his song
Killing me softly with his song
Telling my whole life with his words
Killing me softly with his song

He sang as if he knew me in all my dark despair
And then he looked right through me as if I wasn't there
But he just came to singing, singing clear and strong

Strumming my pain with his fingers
Singing my life with his words
Killing me softly with his song
Killing me softly with his song
Telling my whole life with his words
Killing me softly with his song

Após várias tentativas, Academia Sueca desiste de notificar Dylan sobre o Nobel

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Bob Dylan


Após várias tentativas, Academia Sueca desiste de notificar Dylan sobre o Nobel

"Se ele não quiser vir, não tem problema, a festa será a mesma", disse Sara Danius, secretária permanente da entidade que elege o ganhador


EFE
Estocolmo 17 OUT 2016 - 12:26 COT



A Academia Sueca desistiu de comunicar diretamente ao cantor e compositor norte-americano Bob Dylan que ele foi premiado com o Nobel de Literatura deste ano, depois de quatro dias de tentativas infrutíferas de contatá-lo. Foi o que admitiu nesta segunda-feira à rede pública Radio da Suécia Sara Danius, a secretária permanente da instituição que anualmente elege o ganhador do Nobel dessa categoria.

Os representantes da Academia Sueca falaram com o agente do músico e com outras pessoas próximas, mas não conseguiram falar com Dylan, que também não deu nenhuma declaração pública nem fez qualquer comentário a respeito do assunto nos shows que apresentou nos últimos dias. Ele se apresentou em Las Vegas algumas horas depois do anúncio do prêmio e não fez nenhuma menção, durante todo o espetáculo, à mais prestigiosa distinção do mundo das letras.
Danius disse não estar preocupada com isso, embora ainda não se saiba se o músico irá aceitar o prêmio e se irá a Estocolmo para recebê-lo no próximo dia 10 de dezembro.
“Tenho o pressentimento de que Bob Dylan pode vir. Posso estar enganada e claro que seria uma pena se não viesse, mas de todo modo o prêmio é dele e não podemos nos responsabilizar por aquilo que acontecerá agora. Se ele não quiser vir, não tem problema, a festa será a mesma”, afirmou Danius.
Apenas duas pessoas recusaram o Nobel de Literatura em mais de um século de história: o escritor russo Boris Pasternak, em 1958, obrigado a isso pelas autoridades soviéticas, embora o tenha aceitado mais tarde; e o francês Jean-Paul Sartre, em 1964, devido à sua política de recusar qualquer tipo de premiação.
A Academia Sueca premiou Dylan por ele ter criado “novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção norte-americana”, segundo a decisão divulgada na última quinta-feira.
A escolha surpreendeu por se tratar da primeira vez que o Nobel de Literatura é concedido a um cantor e compositor.

‘El Santo’, o lutador mexicano transformado em ídolo imortal

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O Filho de 'El Santo' durante uma entrevista com o EL PAÍS em 2015. SAÚL RUIZ


‘El Santo’, o lutador mexicano transformado em ídolo imortal

Google homenageia com um doodle o icônico lutador, que completaria 99 anos nesta sexta



DIEGO MANCERA
Cidade do México 23 SET 2016 - 08:43 COT

Rodolfo Guzmán Huerta (Hidalgo, 1917), mais conhecido como El Santo, faria 99 anos nesta sexta-feira, 23 de setembro. O lutador se transformou em um herói da cultura popular do México e em um ícone pop mundial. É por isso que o Google decidiu comemorar seu nascimento com um doodle na América. A imortal máscara prateada o acompanhou até o dia de sua morte. 

Guzmán Huerta cresceu em Tepito, na Cidade do México, uma das áreas mais perigosas da capital, não à toa chamada de bairro violento, também berço de grandes boxeadores. Lá El Santo se interessou pelo beisebol, o futebol americano e, claro, pela luta livre. Em sua juventude usou outros apelidos: Rudy Guzmán, O Homem Vermelho, O Morcego II e O Demônio Negro. Seu treinador, Jesús Lomelí, o convidou a se juntar a um grupo de lutadores que se vestiam de prateado, de modo que lhe sugeriu que mudasse o nome. Assim Rodolfo Guzmán deixou de existir para se transformar em El Santo, o mascarado prateado. 
El Santo forjou seu legado não só por vencer outros lutadores no ringue, mas também mulheres vampiras, múmias e zumbis nos 54 filmes que protagonizou, nos quais era o rockstar que viajava em um carro conversível branco e com o peito nu. El Santo foi uma espécie de Super-Homem mexicano. Mas, para aparentar ser um pouco mais alto, precisava usar saltos nas botas. 
O público mexicano lotava as arenas mexicanas todas as noites para vê-lo. Quem o conheceu afirma que nunca faltou a uma sessão, mesmo que estivesse doente. El Santo era um viciado na luta livre, um espetáculo que se popularizou no México a partir de 1933. Seu carisma valeu para que aparecesse nas revistas em quadrinhos dos anos cinquenta. 
O misticismo dos lutadores mexicanos se baseia na ocultação de sua verdadeira identidade. El Santo conseguiu escondê-la até 1982, já no ocaso de sua carreira. Em um programa conduzido pelo jornalista Guillermo Ochoa o lutador mostrou seu rosto para demonstrar que não estava velho, apesar de já não possuir um porte atlético. Sua voz era áspera. Um ano depois voltou a fazer o mesmo para o comunicador Ricardo Rocha, os produtores decidiram não congelar a imagem, para tentar manter o segredo do Santo. 
Mas a data mais emblemática foi 26 de janeiro de 1984. Naquela tarde decidiu retirar a máscara, pela terceira vez, para o apresentador da Televisa, Jacobo Zabludovsky. El Santo morreu dez dias depois aos 66 anos. Mas o legado continua com o O Filho do Santo e seu neto, El Santo Junior, que estreou profissionalmente em agosto.








A lenda de El Santo ainda vive nas principais arenas de luta livre através de seus produtos. Também na inspiração para as gerações de lutadores e em seu museu, localizado em Tulancingo, Hidalgo, no centro do México, onde nasceu Rodolfo Guzmán. Mas seu próprio filho, Jorge Ernesto Guzmán, reconhece que isso é insuficiente para valorizar a trajetória de seu pai. “Ao que parece as autoridades mexicanas não se interessam. É incrível que o legado de meu pai seja mais apreciado no estrangeiro do que em meu próprio país”, disse o Filho de El Santo ao EL PAÍS em março do ano passado. A santomania não morreu. 
EL PAÍS

Os mais excêntricos, os mais geniais

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Salvador Dalí

Os mais excêntricos, os mais geniais

Existe uma estreita relação entre estranheza e criatividade. Quase tão estreita como a que parece existir entre genialidade e loucura


XAVI SANCHO
18 OUT 2014 - 08:40 COT


“A quantidade de excentricidade em uma sociedade é geralmente proporcional à quantidade de genialidade, vigor mental e valentia moral que ela contém. Que tão poucos se atrevam a ser excêntricos marca o principal perigo da época.” Isto foi escrito por John Stuart Mill em 1859, três anos depois da morte do célebre naturalista e geólogo britânico William Buckland, que dedicou grande parte de sua vida à nobre arte de tentar comer, pelo menos uma vez, todas as espécies do reino animal. Por causa de sua experiência, a alta cozinha nunca tentou experimentar toupeiras ou moscas azuis. “Têm um sabor abominável”, concluiu.

Vinte anos antes, Londres vivia escandalizada com as ideias do proprietário de terras John Mytton, célebre por chegar a jantares em cima de seu urso, ou por uma noite tentar deter um ataque de soluços colocando fogo em sua camisa. Oscar Wilde levava sua lagosta para passear, Graham Bell ensinou seu cachorro a andar sobre duas patas e Newton enfiou uma agulha em sua pálpebra com o objetivo de demonstrar que a percepção da cor é determinada pela pressão. Já no século XX fomos testemunhas das excentricidades de um tal Albert Einstein, que só enchia seu cachimbo com tabaco tirado de guimbas que pegava do chão. Ou de Salvador Dalí, capaz de aparecer para dar uma conferência em Londres vestido com escafandro e acompanhado por dois lobos das estepes. Mas, pouco a pouco, a chama da excentricidade como força motriz da criatividade de uma época foi se apagando e, talvez, voltando a suas origens aristocráticas.

Excentricidade e David Bowie são a mesma coisa. 
Aqui, com tesouras cujo propósito talvez seja
 melhor não saber. 
O mundo das artes tornou-se um negócio grande demais para deixá-lo nas mãos de uma turma de patetas e o da ciência mexia com máquinas muito caras para permitir que algum iluminado começasse a brincar com o acelerador de partículas. Por outro lado, o da política se encheu de bufões amadores como Boris Johnson, comediantes em ascensão, como Beppe Grillo, e comediantes em decadência, como Russell Brand. Questão de prioridades de cada época. Assim, quando hoje pensamos em um excêntrico, quase sempre terminamos citando algo sobre os foulards de Jaime de Marichalar ou sobre algum empresário pirado, como Dean Kamen, o inventor do Segway, um cara que criou um reino independente em uma ilha de Connecticut, onde mandou fazer sua própria moeda (o câmbio é calculado em unidades Pi).


O formulário de visto para entrar inclui um espaço para deixar as impressões digitais e outra na qual deve deixar as anais, além do que existe um Ministro de sorvetes e outro de nepotismo. “Suponho que isto acontece porque o dinheiro, a classe e os privilégios lhe dão total liberdade para ser você mesmo. E isso, bom, pode ser uma faca de dois gumes”, aponta Lady Alice Douglas, descendente da Marquesa de Queensberry, não por acaso uma das mais conflitivas e excêntricas linhagens da aristocracia britânica. Alice foi expulsa de 13 escolas diferentes antes de chegar aos 16 anos.

É preciso ter ‘hobbies’. Oscar Willde, por exemplo, era fã da literatura e dos passeios com sua lagosta.



Esses loucos geniais


Existem certos mitos ao redor da excentricidade que tendem a associá-la com aspectos que pouco ou nada têm a ver com sua verdadeira natureza. Um deles é a rebeldia. Como lembram no The Eccentric Club, uma instituição britânica que comemora esta atitude em relação à vida desde 1781, o verdadeiro excêntrico “não desafia a sociedade e suas normas. Paga o imposto que esta exige e encontra refúgio e consolo em fazer o que as leis permitam, mas da sua maneira e seguindo rituais criados por ele mesmo.” Outro mito ao redor da excentricidade que foi tratada com resultados díspares é o do precário equilíbrio mental daqueles que poderiam ser considerados como tais.

Tirando o fato de que escritor Quentin Crisp uma vez classificou a AIDS como “uma moda passageira”, o certo é que o mundo tende a se dividir entre aqueles que observam a excentricidade como o refúgio de quem se encontra profundamente insatisfeito com a sociedade e consigo mesmo, e aqueles que a admiram como a atitude de quem não se importa com nada e é capaz de encontrar a plenitude nas atividades menos suspeitas. Não há nada mais satisfatório que inventar uma pistola de hélio para abater abelhas e que o negócio não funcione.

Em 1995, com o objetivo de discernir para qual dos dois extremos se inclinam os excêntricos, o psiquiatra escocês Davie Weeks publicou um livro que era o resultado de uma década estudando gente peculiar, em sua maior parte anônima, porque, como insistem no Eccentric Club, “o verdadeiro excêntrico jamais precisa de audiência e muito menos que achem que possui algum valor prático. A associação entre criatividade e praticidade não tem nada a ver conosco.” Bem, depois de estudar mais de mil pessoas estranhas, entre eles alguns que hipnotizavam sapos na Califórnia e um indiano que só andava para trás, Weeks concluiu que seus objetos de estudo visitavam o médico 20 vezes menos do que o comum dos mortais e que, de todos os casos estudados, só 30 deles tiveram, em alguma ocasião, problemas com drogas ou álcool.


Um dos motivos pelos quais os excêntricos com tendência à criatividade, seja esta útil ou meramente recreativa, não precisem se intoxicar para chegar a outros mundos poderia estar em certa predisposição genética. Um estudo recente da doutora Shelley Carson, publicado no final de 2013 na revista Scientific American e intitulado A mente desamarrada: Por que as pessoas criativas são excêntricas, afirma que “os indivíduos que são criativos têm pensamentos estranhos, se comportam de forma peculiar. Tanto a criatividade quanto a excentricidade podem ser o resultado de certas variações genéticas que incrementam a desinibição cognitiva. O cérebro é capaz de filtrar certa informação que, para o resto seria estranha. Para quem é criativo não há nada estranho nela, não se sente esgotado pelo peculiar, o que o leva a experimentar visões e sensações muito mais profundas.”

EL PAÍS


Scarlett Johansson / Naked in Under the Skin

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Scarlett Johansson
NAKED IN UNDER THE SKIN


Jenny Saville / Territories

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Jenny Saville 
Territories
Gagosian Gallery, 1999














Scarlett Johansson / The Cure / Boys Don't Cry / Garotos Não Choram

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Mus


Scarlett Johansson
Boys Don't Cry

I would say I'm sorry
If I thought that it
Would change your mind
But I know
That this time
I have said too much
Been too unkind

I try
To laugh about it
Cover it all up
With lies
I try to
Laugh about it
Hiding the tears
In my eyes
'Cause boys don't cry
Boys don't cry

I would break down
At your feet
And beg forgiveness
Plead with you
But I know that
It's too late
And now
There's nothing
I can do

So I try
To laugh about it
Cover it all up
With lies
I try to
laugh about it
Hiding the tears
In my eyes
'Cause boys don't cry

I would tell you
That I loved you
If I thought
That you would stay
But I know
That it's no use
That you've already
Gone away

Misjudged your limits
Pushed you too far
Took you for granted
I thought
That you
Needed me more

Now I would do
Most anything
To get you back
By my side
But I just
Keep on laughing
Hiding the tears
In my eyes
'Cause boys don't cry
Boys don't cry
Boys don't cry



The Cure
Garotos Não Choram

Eu diria que estou arrependido
Se achasse que isto faria
Você mudar de idéia
Mas eu sei que
Desta vez
Eu falei demais
Fui indelicado demais

Eu tento
Rir disso tudo
Cobrindo
com mentiras
Eu tento
rir disso tudo
Escondendo as lágrimas
Em meus olhos
Pois garotos não choram
Garotos não choram

Eu me desmancharia
Aos seus pés
Mendigaria seu perdão
Imploraria a você
Mas eu sei
Que é tarde demais
E agora
Não há nada
Que eu possa fazer

Então eu tento
Rir disso tudo
Cobrindo
Com mentiras
Eu tento
Rir disso tudo
Escondendo as lágrimas
Em meus olhos
Pois garotos não choram

Eu diria a você
Que te amava
Se achasse
Que você ficaria
Mas eu sei
Que é inútil
E você
Foi embora

Julguei mal o seu limite
Fiz você ir longe demais
Te subestimei
Não te dei valor
Pensei que você
Precisasse mais de mim

Agora eu faria
Qualquer coisa
Para ter você
De volta ao meu lado
Mas eu só
Fico rindo
Escondendo as lágrimas
Em meus olhos
Pois garotos não choram
Garotos não choram
Garotos não choram


Sigmund Freud / Fanáticos

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Fanáticos

Salvador Dalí desenhou Freud como um híbrido monstruoso entre caracol e humano


PATRICIO PRON
17 AGO 2014 - 17:00 COT


Salvador Dalí tentou entrar três vezes na residência vienense de Sigmund Freud – e três vezes foi rejeitado. Tinha lido A Interpretação dos Sonhos em 1922 e havia se convertido em admirador incondicional da obra de Freud, a quem considerava um gênio: segundo observava, seu crânio se assemelhava à concha de um caracol, de modo que a fixação pelo pai da psicanálise e pelos moluscos gastrópodes foi um tema recorrente em suas conversas até que, talvez para mudar de assunto, o mecenas Edward James e o escritor Stefan Zweig organizaram um encontro entre os dois em julho de 1938 em Londres.

Freud acabara de escapar da Áustria anexada pelo nacional-socialismo e estava morrendo do câncer de mandíbula que acabaria com sua vida no ano seguinte. Dalí não falava nem alemão nem inglês e o diálogo foi impossível. Por isso, Dalí se sentou e começou a desenhar Freud enquanto este conversava com James e Zweig. Anos depois, afirmaria que aquele encontro foi uma das experiências mais importantes de sua vida, mas é possível que Freud não tivesse a mesma opinião. Gostamos de pensar que os encontros entre as pessoas que admiramos renderão momentos também admiráveis, mas isso quase nunca ocorre, provavelmente porque neles se impõe a adulação ou a indiferença. É melhor não conhecer nossos ídolos? Não sei. Dalí desenhou Freud como um híbrido monstruoso entre caracol e humano. Zweig conseguiu interceptar a obra antes que Freud a visse, convencido de que ficaria irritado, e o pai da psicanálise nunca pôde contemplar seu retrato. Apenas disse, enquanto Dalí o desenhava: “Esse jovem parece um fanático. Não me surpreende que haja uma guerra civil na Espanha se todos são como ele”.


DALÍ EM SÃO PAULO


Depois de passar pelo Rio de Janeiro, São Paulo recebe, a partir deste domingo 19, uma das maiores mostras do surrealista Salvador Dalí já realizada no país.
No Rio, quase um milhão de pessoas passaram pela exposição no Centro Cultural Banco do Brasil. Em São Paulo, a mostra estará aberta ao público no Instituto Tomie Ohtake (Av. Brigadeiro Faria Lima, 201) até o dia 11 de novembro, com entrada gratuita.
EL PAÍS




Juan José Millás / A psicanálise é válida?

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Sigmund Freud

A psicanálise é válida?

A psicanálise do ponto de vista da ciência e da literatura. Nasceu da investigação ou de um pensador visionário? É como a própria vida?


A cena do crime

Por Juan José Millás

Então, Freud. Acabo de terminar minha análise com uma psicanalista ortodoxa, seja lá o que signifique ortodoxa (e psicanalista). Chama-se Marta, como uma das irmãs de Lázaro, o ressuscitado, e tem o apelido de Lázaro, como o mesmíssimo ressuscitado. Marta Lárazo, portanto, 80 anos, muitos deles ouvindo. Quando deito no seu divã (que parece um pobre catafalco), o morto era eu. Cheguei com a fantasia de que me dissesse: “Levante e ande”. A realidade cria espontaneamente esse tipo de coincidência estranha.
No começo, eu preparava as sessões para compensar o preço. Hoje, direi isso, contarei aquilo. Enquanto fazia o dever de casa, estabelecia associações de primeiro nível atravessadas pelo pensamento consciente. Chamo de “associações de primeiro nível”, mas poderia chamá-las de álibis, porque seu objetivo era demonstrar que eu não havia estado na cena do crime no dia das atas. É assim que muitos romances são escritos, na base de álibis narrativos. E nem todos são realmente ruins, ainda que também não sejam bons. Digamos que as costuras ficam visíveis. Um bom romance, como uma boa análise, não pode mostrar as costuras.


As meias que os peregrinos do Caminho de Santiago utilizam são completamente lisas, pois as costuras produzem feridas nos pés e arruinam a viagem de iniciação. As costuras narrativas arruinam a viagem de iniciação do leitor de novelas, e também do autor, que, com uma boa associação, feita no momento oportuno, derruba todas as defesas. Às vezes, acontece na décima sessão de análise, ou no décimo capítulo do livro. Isso não quer dizer que o trabalho anterior tenha sido completamente inútil, mas tem que haver coragem de voltar ao começo e se desprender de todo o material dispensável.
Quase todas as vidas, mesmo as mais coerentes, neste primeiro nível associativo (o do álibi) estão cheias de costuras, inclusive de cicatrizes. Observando-se com certa distância, constrói-se a vida costurando (bem ou mal, esse é outro assunto) retalhos de várias naturezas e cores, como essas colchas étnicas (o que raios significa étnico), que nos agradam tanto pela ingenuidade, às vezes pelo mal gosto, um mal gosto (ou uma ingenuidade) que anula a vergonha de mostrá-las aos convidados depois do jantar, após retornar de Honduras ou da Guatemala.
Essas colchas são um exercício de associação livre, por isso, nos comovem até que começam a nos incomodar. O que há debaixo desses collages, cujas cicatrizes, que a princípio nos agradavam, agora nos cansam? Façamos uma suposição: pobreza. O que há, fequentemente, não é ingenuidade ou mal gosto, mas pobreza. Talvez fiquemos incomodados por causa disso. Estou fazendo uma bagunça, mas de propósito. Alcança-se o segundo nível da análise ou da novela juntando os pontos. Da vida também. Nesse segundo nível, não há costuras. É aqui que entendemos em toda a sua extensão a frase de Borges, que o azar é um modo de casualidade cujas leis ignoramos.

Estou fazendo uma bagunça, mas de propósito. Alcança-se o segundo nível da análise ou da novela juntando os pontos

E, no fim, eu estive, sim, na cena do crime no do dia das atas, mas não era o assassino. Era o morto. Trata-se de uma possibilidade que eu nem havia considerado no primeiro nível. Então, percebe-se que na análise (e no romance), não temos que ir com os deveres de casa feitos, mas com eles desfeitos. Significa que deve-se deitar no divã (ou sentar-se à frente do computador) e, ao invés de começar pelo mais importante, começar pelo banal, pelo periférico. Pelo subúrbio. O significado está sempre no periférico. É um modo de dizer que a sala das máquinas da vida (e do romance) não se encontra onde se espera (isso é uma forma de delírio), mas onde não se espera. Chega-se a esse lugar pelo método freudiano de associação livre, a qual, com o tempo, percebe-se ser a menos livre das associações. Escrever um romance, portanto, assemelha-se muito a reler psicanaliticamente uma vida.
Quanto a Marta Lázaro, ela continua ouvindo. Não vamos nos ver novamente. Nunca. Ficamos nisso. E nisso estamos.

Não é ciência

Por Javier Sampedro

Sigmund Freud não era um homem modesto. Pensava que a posição da humanidade no mundo havia sido destronada principalmente três vezes na história do conhecimento. A primeira foi por Copérnico, que nos havia expulsado do centro da criação para deixar esse emprego geométrico ao Sol; a segundo foi a de Darwin, que nos havia expulsado do paraíso no qual Deus nos criou a sua imagem e semelhança. E a terceira, por ele mesmo, que nos havia deportado de nossa própria mente ao revelar que, na maioria das vezes, ela está ocupada por um exército de demônios dos quais nem mesmo somos conscientes. Copérnico, Darwin e Freud, assim se resume a história da ciência. Isso que é autoestima, doutor.
A psicanálise é uma ciência? Antes de responder, consideremos o que disse Freud de si mesmo, em 1900: “A verdade é que não sou um homem da ciência, absolutamente. Sou apenas um conquistador, um aventureiro”. Percebe-se que, por esse critério, a psicanálise não é uma ciência. E, por outros critérios, também não: não cumpre os requisitos mínimos, nem se propõe a fazer isso, muito menos serve de grande coisa para a ciência posterior. É provável tenha tido mais influência nas artes, de Dalí a Woody Allen, e com menção especial a Hitchcok e seu filme Marnie. Não à ciência. Mas isto é apenas a metade da história. Porque a ciência bebe de muitas fontes, e os pensadores visionários tiveram sua influência, às vezes crucial, no grande esquema das coisas. Bons exemplos são o efeito que a obra do reverendo e economista Robert Malthus teve na concepção da teoria da seleção natural de Darwin; a importância chave da leitura dos filósofos David Hume e Ernst Mach para levar Einstein a considerar a possibilidade de que o tempo poderia se dilatar; ou o gatilho que foi um livro filosófico de Erwin Schrödinger – O que é a vida? – no começo da biologia molecular. Nesse sentido, é possível que Freud tenha tido mais relevância do que a maioria dos neurocientistas de hoje em dia está disposta a lhe conceder.
O que talvez seja a sua descoberta central, a do componente inconsciente da mente, está confirmada atualmente acima de qualquer dúvida razoável. O que experimentamos como mente consciente representa uma minúscula parte da nossa vida diária. Não conseguiríamos nos levantar da cama – não vamos nem falar sobre cruzar a rua ou organizar nossa vida – sem uma atividade cerebral que seja propriedade intelectual de um enxame de processadores neuronais. Eles permanentemente analisam nossas percepções e também possuem um modelo interno de mundo, em grande parte inato, e em outra parte formado sem que tenhamos a menor ideia do que está acontecendo ali, dentro da nossa própria cabeça.

Se quiser submeter-se à psicanálise, importa muito pouco que não seja uma ciência. A única coisa que você precisa saber é se funciona.

O subconsciente, como conceito abstrato, é uma predição correta de Freud. Mas a redescoberta moderna desse fenômeno não lhe deve nada. Sua materialização, ou sua revelação como algo empírico, ocorreu um século depois e de forma independente das reflexões, sem dúvida brilhantes, mas também exageradas, daquele psiquiatra.
Não está claro que Freud tenha infligido dano ao desenvolvimento das ciências da mente no século XX. É mais claro que esse dano tenha vindo do rechaço a Freud, particularmente nas instituições americanas. O grande neurologista Michael Gazzaniga reclamou que a psicologia havia desaparecido dos departamentos universitários. As pessoas – inclusive as que financiavam a pesquisa – consideravam-na uma palavra suja, e é muito provável que os excessos de Freud no começo do século, com sua franca propensão a atribuir ao sexo quase qualquer coisa, tenha muito a ver com isso naquela sociedade pacata e religiosa.
Em todo caso, se quiser submeter-se à psicanálise, importa muito pouco que não seja uma ciência. A única coisa que você precisa saber é se funciona. E, se acredita que funciona, irá em frente. Mas não se esqueça de consultar também um médico de verdade.

EL PAÍS


John Banville / O Príncipe das Astúrias das Letras

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John Banville


John Banville, o Príncipe das Astúrias das Letras

O escritor irlandês, autor de obras como "O mar" e "Luz antiga" e da série de policiais noir com seu alter ego Benjamin Black superou autores como McEwan, Salter e Murakami


WINSTON MANRIQUE SABOGAL
Madri 4 JUN 2014 - 11:00 COT

Três escritores em um. Três mundos com claros-escuros: dois saídos de sua cabeça e outro, alheio, aumentado por ele. Esse é John Banville (Wexford, Irlanda, 1945). E foi quem ganhou o 34º Prêmio Príncipe de Astúrias das Letras 2014. Porque o romancista irlandês é o criador de deliciosos e inquietantes universos privados e emocionais em obras como Eclipse, O mar ou Luz antiga; também é o criador de zonas mais escuras com seu alter ego Benjamin Black nos romances policiais; e, não contente com isso, e sob o nome de Black se atreveu a reviver Philip Marlowe, o célebre detetive criado por Raymond Chandler.

O jurado destacou a "inteligente, profunda e original criação de sua obra e seu outro eu, Benjamin Black, autor de romances policiais perturbadores e críticos". A ata do juri conclui dizendo: "Cada criação sua atrai e deleita pela maestria no desenvolvimento da trama e no domínio dos registros e matizes expressivos, e por sua reflexão sobre os segredos do coração humano." Banville superou candidaturas como as de Ian McEwan, James Salter e Haruki Murakami.
Ao conhecer a notícia, o escritor se emocionou e depois perguntou a sua editora na editora Alfaguara, María Fasce: "Então, o prêmio não será entregue pelo Príncipe, mas pelo Rei?" A pergunta se deve a que os Príncipes de Astúrias, Dom Felipe e Dona Letizia, terão sido coroados reis quando o prêmio for entregue em outubro. A entrega corresponderia a sua filha Leonor, de 8 anos. Neste momento, a Fundação Príncipe de Astúrias estuda se muda ou não o nome dos prêmios. As opções são: Prêmios Princesa de Astúrias ou Prêmios do Principado de Astúrias, como era originalmente.





ATA DO JÚRI


Reunido em Oviedo, o Júri do Prêmio Príncipe de Astúrias das Letras 2014, integrado por Xuan Bello Fernández, Amelia Castilla Alcolado, Juan Cruz Ruiz, Luis Alberto de Cuenca y Prado, José Luis García Martín, Álex Grijelmo García, Manuel Llorente Manchado, Rosa Navarro Durán, Carme Riera i Guilera, Fernando Rodríguez Lafuente, Fernando Sánchez Dragó, Ana Santos Aramburo, Diana Sorensen, Sergio Vila-Sanjuán Robert, presidido por D. José Manuel Blecua Perdices e atuando como secretário D. José Luis García Delgado, concorda em conceder o Prêmio Príncipe de Astúrias das Letras 2014 ao romancista irlandês John Banville pela inteligente, profunda e original criação de sua obra, e seu outro eu, Benjamin Black, autor de perturbadores e críticos romances policiais.
A prosa de John Banville abre-se em deslumbrantes espaços líricos através de referências culturais onde os mitos clássicos são revitalizados e a beleza anda junto com a ironia. Ao mesmo tempo, mostra uma análise intensa de complexos seres humanos que nos prendem em sua descida à escuridão da vilania ou em sua fraternidade existencial. Cada criação sua atrai e deleita pela maestria no desenvolvimento da trama e no domínio dos registros e matizes expressivos, e por sua reflexão sobre os segredos do coração humano.
Oviedo, 4 de junho de 2014

Silencioso, cauteloso, prudente, pausado, incisivo, elegante... Banville é um narrador que não apenas acredita no feitiço de contar uma história, também, e de maneira crucial, considera que a beleza do escrito é essencial. Suas obras retratam sentimentos, emoções e dúvidas do ser humano frente a situações íntimas e levam o leitor a se refletir nelas. "O único dever de um autor é escrever bons romances. Quando tentam misturar arte e política, pode ser que o resultado final seja má arte e má política", disse o escritor em um chat aos leitores de EL PAÍS, no ano passado. Banville ganhou o Prêmio Booker (por O mar) e outros prêmios como o Prêmio Allied Irish Bank Fiction por Kepler.
Até 2007, o autor irlandês era pouco conhecido na Espanha, mas era bastante cultuado. É a partir desse ano quando aparece seu alter ego,Benjamin Black, em O pecado de Christine, que sua popularidade começa a crescer. E já são sete romances com este narrador. Em uma entrevista a este jornal, em fevereiro último, para a promoção de The black-eyed blonde, disse que estava com uma idade na qual gostava de tentar coisas novas para não "murchar": "Sempre estou escrevendo um romance de Banville, mas sobra energia literária que derivo para Benjamin Black e, agora, para Chandler. Isso me diverte e estou em um momento no qual posso me permitir assumir riscos, fazer besteiras".
John Banville disse várias vezes que para ele escrever é como respirar. E ler é seu complemento, o ar... a viagem: "Quando comecei, era uma maneira de fugir da minha cidade, do meu tempo. À medida que continuava lendo descobri que era, na verdade, o caminho para entrar no mundo."
John Banville é hoje um dos poucos escritores que supera a si mesmo com cada novo livro, assegura sua editora na Espanha, María Fasce. "A prova é Luz antiga,mas também The black-eyed blonde, o último romance que assinou com seu pseudônimo para romances noir, Benjamin Black. Gosta de dizer que Black é um artesão e Banville um estilista: é só outra amostra de seu humor. Banville e Black nos fazem lembrar da mesma forma quanta beleza, prazer e emoção existe na literatura. Disse também que não se importa com os prêmios, mas me escreveu comovido com a notícia."
O Banville jornalista e crítico literário colabora em publicações como The New York Times Review of Books. Nascido na Irlanda em 1945, o escritor trabalhou na empresa aérea Aer Lingus. Nos anos setenta trabalhou como jornalista no diário Irish Press, até seu fechamento em 1995. Depois passou a subdiretor do Irish Times, com a dupla função de editor literário até 1999.
Banville se une à lista de ganhadores do Príncipe de Astúrias das Letras na qual estão autores como Mario Vargas Llosa, Antonio Muñoz Molina, Philip Roth, Margaret Atwood, Amoz Oz, Doris Lessing, Susan Sontag, Claudio Magris, Carlos Fuentes, Günter Grass, Álvaro Mutis, Claudio Rodríguez e Juan Rulfo.







BIBLIOGRAFIA


NARRATIVA
Long Lankin, relatos 1970
Nightspawn, 1971
Birchwood, 1973
Copérnico, 1976
Kepler, 1981
The Newton Letter, 1982
Mefisto, 1986
O livro das provas, 1989 - Record, 2002
Ghosts, 1993
The Broken Jug, 1994
Athena, 1995
O Intocável, 1997 - Record, 1999
Eclipse, 2000
O mar, 2005 - Nova Fronteira, 2007
Os infinitos, 2009 - Nova Fronteira, 2011
Luz antiga, 2012 - Biblioteca Azul, 2013
Como Benjamin Black
O pecado de Christine, 2006 - Rocco, 2011
O cisne de prata, 2007 - Rocco, 2013
The Lemur, 2008
Elegy for April, 2010
A Death in Summer, 2011
Vengeance, 2012
The Black-Eyed Blonde, 2014

EL PAÍS


FICCIONES


PESSOA

DRAGON


Descobertos em Sevilha quatro textos inéditos sobre Cervantes

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Miguel de Cervantes


Descobertos em Sevilha quatro textos inéditos sobre Cervantes

Os documentos provam que o romancista permitiu que seu salário fosse entregue a uma mulher, desconhecida em sua biografia


MARGOT MOLINA
Sevilha 11 AGO 2014 - 12:42 COT

O trabalho, quase detetivesco, de um arquivista de La Puebla de Cazalla, um município da planície sevilhana, na Espanha, iluminou aspectos desconhecidos da biografia de Miguel de Cervantes. A descoberta de quatro documentos inéditos em diferentes arquivos traz novos dados sobre seu trabalho como arrecadador da Fazenda Real e a possibilidade de que houvesse uma quarta mulher em sua vida.
José Cabello Núñez, encarregado do Arquivo Municipal de La Puebla de Cazalla, encontrou por acaso, há três anos, um manuscrito de 5 de março de 1593 no qual Cervantes era inscrito na Prefeitura de La Puebla como comissário de víveres da Armada Real, a pedido do fornecedor da frota das Índias, Cristóbal de Barros. O trabalho do romancista era arrecadar trigo e cevada para abastecer a frota de Felipe II. “O documento é importante porque confirma que Cervantes esteve em La Puebla, algo que era desconhecido até agora, e o relaciona pela primeira vez com Cristóbal de Barros, o armador que construiu os navios que participaram da batalha de Lepanto, na qual Cervantes também lutou, além de ser fornecedor geral para os galeões da Armada e a frota do caminho das Índias”, segundo comentou nessa segunda-feira o pesquisador que descobriu o primeiro manuscrito entre os milhares de documentos de La Puebla de 1543 a 1894, depositados no Arquivo do Distrito Notarial de Morón de la Frontera.

“Por ordem e mandato de Cristóbal de Barros, fornecedor dos galeões da armada das Índias, veio para esta vila Miguel de Cervantes Sayabedra para tributar os vassalos desta vila para o fornecimento dos ditos galeões (...) combinamos e acertamos com o dito comissário que lhe daremos cento e trinta ‘fanegas’ (medida de capacidade) de trigo e vinte ‘fanegas’ de cevada, com o qual se contenta e satisfaz toda a repartição que esta vila poderia fazer”, diz o documento guardado no Arquivo Notarial de Morón.
“Todos esses documentos se conservaram graças à uma ordem do século XIX que obrigou a Prefeitura de La Puebla a depositar todos os documentos notariais em Morón [como capital da região], uma vez que o resto do arquivo de La Puebla foi queimado durante a Guerra Civil. Em 2002, para comemorar o quinto centenário da outorga da carta para La Puebla de Cazalla pelo conde de Ureña, todos os documentos foram microfilmados e eu os fui lendo e classificando durante os últimos anos”, explica Cabello Núñez, que a partir desse primeiro descobrimento começou a seguir um caminho que o levou a localizar outros três documentos relacionados com o pai do romance moderno, que passou 10 anos na província de Sevilha, de 1587 a 1597, quando a capital andaluza era uma das cidades mais importantes do mundo.
A relação do romancista com Cristóbal de Barros levou Cabello Núñez até o Arquivo Geral das Índias de Sevilha, onde encontrou um lavramento de Barros fechado em novembro de 1593 no qual ordenava o pagamento de um salário de 19.200 maravedis, “uma quantidade bastante digna para a época”, diz o pesquisador, por 48 dias de serviço como “comissário” da Fazenda Real recolhendo tributos em vários municípios da província de Sevilha. “No Arquivo das Índias também localizei outro documento que reconhece que Cervantes realizou esse serviço entre 21 de fevereiro e 28 de abril de 1593. Mas, na minha opinião, a descoberta mais interessante é a procuração que encontrei no Arquivo de Protocolos Notariais de Sevilha, no qual Cervantes outorga uma procuração para Magdalena Enríquez, uma mulher que nunca antes havia aparecido relacionada com o escritor, para receber seu salário. O documento é o único dos quatro que está assinado por ele”, afirma o arquivista municipal, que escreveu dois artigos, ambos ainda sem publicação, nos quais relaciona todo o trabalho dos últimos anos.

O romancista outorgou uma procuração para Magdalena Enríquez, uma confeiteira de Sevilha, para que recebesse seu salário

“Tudo isso abre as portas para novas investigações que poderão dar mais luz à biografia do autor de Dom Quixote. Até o momento era conhecida a existência de três mulheres importantes em sua vida: Ana Franca de Rojas, com a qual teve uma filha natural chamada Isabel de Saavedra; Catalina de Salazar y Palacios, com quem se casou em 1584, e Jerónima Alarcón, uma sevilhana de quem Cervantes aparece como fiador e pagador de algumas casas em 1589”, esclarece o pesquisador.
“Desta mulher, Magdalena Enríquez, sabemos somente que era confeiteira e natural de Sevilha. Ela fazia os biscoitos, esse pão sem levedura que era cozido duas vezes para que durasse meses, com os quais os barcos eram abastecidos antes de zarpar para a América. Ela devia ser viúva, pois de outra forma não poderiam ter feito uma procuração em seu nome, e ter algum tipo de relação com Cervantes quando ele assinou uma procuração para receber seu salário, já que deveria partir para uma nova tarefa e não poderia esperar o pagamento”, explica Cabello Núñez.

Shakespeare e Cervantes, essa é a questão

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Ilustração de Ana Juan.
400 ANOS DA MORTE DE DOIS GÊNIOS

Shakespeare e Cervantes, essa é a questão

A coincidência da morte de dois gigantes da literatura incentiva a busca por identidade comum


ALBERTO MANGUEL
16 ABR 2016 - 14:15 COT



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Nossa aptidão para ver constelações de estrelas distantes entre si, e geralmente mortas, aparece em outras áreas de nossa vida sensível. Agrupamos em uma mesma cartografia imaginária marcos geográficos diferentes, feitos históricos isolados, pessoas cujo único ponto em comum é um idioma ou um aniversário compartilhado. Criamos circunstâncias cujas explicações podem ser encontradas apenas na astrologia ou na quiromancia, e a partir dessas assombrações, tentamos responder a velhas perguntas metafísicas sobre o azar e a sorte. O fato de que as mortes de William Shakespeare e Miguel de Cervantes sejam quase coincidentes faz com que não apenas associemos os dois personagens singulares em comemorações oficiais obrigatórias, como também busquemos nesses seres tão diferentes uma identidade em comum.
Do ponto de vista histórico, suas realidades foram notoriamente distintas. A Inglaterra de Shakespeare transitou entre a autoridade de Isabel e a de Jaime, a primeira de ambições imperiais e a segunda de preocupações internas, características que se refletiram em obras como Hamlet e Julio César, por um lado, e em Macbeth e O Rei Lear, por outro. O teatro era uma arte menosprezada na Inglaterra: quando Shakespeare morreu, depois de ter escrito algumas das obras que hoje em dia consideramos universalmente imprescindíveis para nossa imaginação, não houve cerimônias oficiais em Stratford-upon-Avaon, nenhum de seus contemporâneos europeus escreveu uma elegia em sua homenagem, e ninguém na Inglaterra propôs que fosse sepultado na abadia de Westminster, onde jazem escritores célebres como Edmund Spenser e Geoffrey Chaucer. Shakespeare era (segundo seu quase contemporâneo John Aubrey) filho de um açougueiro, e quando era adolescente, gostava de recitar poemas diante dos perturbados matadouros. Foi ator, empresário teatral, cobrador de impostos (como Cervantes) e não sabemos com certeza se alguma vez viajou para outro país. A primeira tradução de uma de suas obras apareceu na Alemanha, em 1762, quase um século e meio depois de sua morte.

O espanhol do autor de Dom Quixote é despreocupado, generoso, esbanjador. Importa mais o que conta que como o conta

Cervantes viveu em uma Espanha que estendia sua autoridade sobre a parte do Novo Mundo a que tinha direito pelo Tratado de Tordesilhas, com a cruz e a espada, decapitando “um número infinito de almas”, disse o padre Las Casas, para “inchar-se de riquezas em um curto espaço de dias e elevar-se a estados muito altos e sem proporções de seu povo” com a “insaciável cobiça e ambição que tiveram, que foi maior do que o mundo poderia ser”. Com sucessivas expulsões de judeus e árabes, convertendo-os em seguida, a Espanha tentou inventar uma identidade cristã pura para si própria, negando a realidade de suas raízes entrelaçadas. Em tais circunstâncias, Dom Quixote foi um ato subversivo, com a entrega da autoria do que seria a obra-prima da literatura espanhola a um mouro, Cide Hamete, e com o testemunho do mourisco Ricote denunciando a infâmia das medidas de expulsão. Miguel de Cervantes (conta ele mesmo) foi “soldado por muitos anos e preso durante cinco anos e meio. Perdeu a mão esquerda com um tiro de mosquete na batalha de Lepanto, uma ferida que, embora pareça feia, foi tratada como bela”. Teve missões na Andaluzia, foi cobrador de impostos (como Shakespeare), ficou preso em Sevilha, foi membro da Congregação de Escravos do Santíssimo Sacramento, e mais tarde, noviço da Terceira Ordem. Quixote tornou-o tão famoso que, quando escreveu a segunda parte, disse ao bacharel Carrasco, e sem exageros, “que tenho para mim que atualmente foram impressos mais de doze mil livros dessa história; senão, diga isso a Portugal, Barcelona e Valência, onde eles foram impressos; e ainda há boatos de que está sendo impresso na Antuérpia, e para mim se verifica que não haverá nação ou língua em que ela não será traduzida”.

Dom Quixote desenhado por Robert Smirke para uma tradução inglesa de 1818. O pintor britânico ilustrou tanto a novela de Cervantes quanto os dramas de Shakespeare.


A língua de Shakespeare havia chegado ao seu ponto mais alto. A confluência das línguas germânicas e latinas e o riquíssimo vocabulário do inglês do século XVI permitiram que Shakespeare alcançasse assombrosas extensão sonora e profundidade epistemológica. Quando Macbeth afirma que sua mão ensanguentada “faria púrpura do mar universal, tornando rubro o que em si mesmo é verde”, (“the multitudinous seas incarnadine / Making the green one red”), os lentos epítetos multissilábicos latinos são contrapostos aos bruscos e contundentes monossílabos saxões, ressaltando a brutalidade do ato. Instrumento da Reforma Protestante, a língua inglesa foi submetida a um severo escrutínio pelos censores. Em 1667, na História da Real Sociedade de Londres, o bispo Sprat alertou sobre os perigos sedutores dos extravagantes labirintos do barroco e recomendou o retorno à primitiva pureza e brevidade da linguagem, “quando os homens comunicavam um certo número de coisas em um número igual de palavras”. Apesar dos magníficos exemplos do barroco inglês - sir Thomas Browne, Robert Burton, o próprio Shakespeare, claro -, a Igreja anglicana exigia exatidão e concisão, que permitiriam aos eleitos o entendimento da Verdade Revelada, como havia feito a equipe de tradutores da Bíblia por ordem do rei Jaime. Shakespeare, no entanto, conseguiu ser milagrosamente barroco e exato, expansivo e escrupuloso ao mesmo tempo. A acumulação de metáforas, a profusão de adjetivos, as mudanças de vocabulário e de tom aprofundam e não diluem o sentido de seus versos. O talvez famoso demais monólogo de Hamlet seria impossível em espanhol porque exige escolher entre o ser e o estar. Em seis monossílabos ingleses, o príncipe da Dinamarca define a preocupação essencial de todo ser humano consciente; Calderón, no entanto, precisa de 30 versos espanhóis para dizer a mesma coisa.

O mestre de Avon conseguiu ser milagrosamente barroco e exato, expansivo e escrupuloso ao mesmo tempo

O espanhol de Cervantes é despreocupado, generoso, esbanjador. Ele se importa mais com o que conta do que com como conta, e menos com como conta do que com o puro prazer de alinhavar palavras. Frase após frase, parágrafo após parágrafo, é na fluência das palavras que viajamos pelos caminhos de sua Espanha empoeirada e difícil, e seguimos as violentas aventuras do herói justiceiro e reconhecemos os personagens vivos de Dom Quixote e Sancho. As inspiradas e sinceras declarações do primeiro e as vulgares e não menos sinceras palavras do segundo cobram vigor dramático na enxurrada verbal que as arrasta. Essencialmente, a máquina literária inteira de Dom Quixoteé mais verossímil, mais compreensível, mais vigorosa que qualquer uma de suas partes. As citações cervantinas extraídas de contexto parecem quase banais; a obra completa é talvez o melhor romance que já foi escrito e o mais original.
Se quisermos ceder ao nosso impulso associativo, podemos considerar esses dois escritores como opostos ou complementares. Podemos ver um deles à luz (ou à sombra) da Reforma e o outro da Contrarreforma. Podemos ver um deles como mestre de um gênero popular e de pouco prestígio e o outro como mestre de um gênero popular e de prestígio. Podemos vê-los como iguais, artistas empregando os métodos à disposição para criar obras iluminadas e geniais, sem saber que eram iluminadas e geniais. Shakespeare nunca reuniu os textos de suas obras teatrais (a tarefa ficou a cargo de seu amigo Bem Jonson), e Cervantes estava convencido que sua fama dependeria da Viagem de Parnaso, e de Persiles e Sigismunda.

O riquíssimo vocabulário do inglês do século XVI permitiu a Shakespeare uma extensão sonora e uma profundidade epistemológica assombrosas

Esses dois monstros se conheceram? Podemos suspeitar que Shakespeare ouviu falar de Dom Quixote e que o leu, ou leu ao menos o episódio de Cardenio, que converteu em uma peça que hoje em dia está perdida; Roger Chartier investigou detalhadamente essa tentadora hipótese. A resposta provavelmente é não, mas, se o encontro aconteceu, é possível que nenhum dos dois tenha reconhecido o outro como uma estrela de importância universal, ou que simplesmente não admitiram outro corpo celeste de igual intensidade e tamanho nas suas órbitas. Quando Joyce e Proust encontraram-se, trocaram três ou quatro banalidades, Joyce queixou-se de suas dores de cabeça, e Proust de suas dores no estômago. Talvez tenha acontecido algo semelhante com Shakespeare e Cervantes.

Christopher Marlowe / O outro gênio por trás das obras de Shakespeare

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Retrato de Christopher Marlowe


O outro gênio por trás das obras de Shakespeare

Estudo afirma que Christopher Marlowe foi coautor de ‘Enrique VI’ com o mestre britânico


PATRICIA TUBELLA
Londres 24 OUT 2016 - 14:07 COT






Sobre a vida do dramaturgo, poeta e tradutor inglês Christopher Marlowe há muitas especulações e poucas certezas, para além do consenso de que ele foi um colaborador, uma influência e também um forte rival de William Shakespeare nos tempos elisabetanos. Mas uma equipe internacional de pesquisadores chegou à conclusão de que a cooperação entre eles foi bem mais estreita, a ponto de se atribuir, agora, a Marlowe nada mais nada menos do que a coautoria das três partes de Enrique VI, assinada pelo Bardo.



Os dois homens recebem conjuntamente os créditos como autores desse drama histórico na nova edição do New Oxford Shakespeare, cujos quatro volumes que reúnem a produção completa de Shakespeare serão lançados em o final de outubro e dezembro. “Conseguimos confirmar a participação de Marlowe nas três obras de forma bastante clara e consistente”, afirmou ao jornal The Guardian o professor norte-americano Gary Taylor, um dos coordenadores da equipe de 23 especialistas provenientes de cinco países que defende essa tese.
Recorrendo às modernas ferramentas digitais para analisar os textos, o estudo conseguiu estabelecer que a colaboração de Shakespeare com diversos autores foi muito mais ampla do que se acreditava até agora, e que outras mãos participaram de até 17 das 44 obras do Bardo. Esse número mais do que dobra a estimativa registrada n a edição anterior do New Oxford Shakespeare, de trinta anos atrás. Quando a prestigiosa publicação da Oxford University Press determinou, então, a colaboração externa em oito trabalhos shakespearianos, alguns setores do mundo acadêmico “se disseram indignados”, lembrou Taylor ao jornal. Pois bem, afirma o professor agora, jogando mais lenha na fogueira, “em 1986 nós subestimamos o volume dos trabalhos realizados em colaboração”, os quais, segundo as conclusões do mais recente estudo, estariam próximos de 38% de toda a sua obra. 
A figura de Christopher Marlowe (cuja data de nascimento é desconhecida, embora se saiba que foi batizado em Canterbury em 26 de fevereiro de 1564) já foi objeto de todo tipo de teorias conspirativas baseadas em vários aspectos obscuros de sua biografia e de sua própria morte, ocorrida quando ele contava com apenas 29 anos de idade (1593). Entre elas, a de que o autor de Dido, Rainha de Cartado ou Doutor Fausto teria simulado o seu falecimento para continuar escrevendo sob o nome de William Shakespeare. Em outras palavras, que Shakespeare não escreveu as obras de Shakespeare, mas sim Marlowe. Essa teoria encontra a resistência de um setor do mundo acadêmico de admitir quer o Bardo tenha produzido várias de suas peças em coautoria, uma prática, na verdade, muito comum nos tempos do teatro elisabetano.

A forma como Shakespeare e esses outros autores dividiam entre si os enredos e personagens, compunham os seus respectivos trabalhos ou unificavam estilos, tudo isso são elementos que os estudiosos ainda não conseguiram detectar. Mas o que parece claro para a equipe de acadêmicos que continua a esquadrinhar o legado do maior dramaturgo de todos os tempos é que as três partes de Enrique VI foram finalizadas a quatro mãos: as de Shakespeare e as da nebulosa personalidade de Christopher Marlowe.
EL PAÍS


Shakespeare exagerou a deformidade do rei Ricardo III

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Retrato do rei Ricardo III do século XVI. NATIONAL PORTRAIT GALLERY

Shakespeare exagerou a deformidade do rei Ricardo III

A descrição física do monarca que o escritor brindou à literatura universal foi pura invenção



PATRICIA TUBELLA
Londres 30 MAI 2014 - 10:01 COT




Ricardo III não mancava e, longe desse físico deformado pela importuna que vieram replicando em cena os mais ilustre atores shakesperianos, na verdade era um homem de presença atraente. Mais de cinco séculos depois de sua morte no fragor da batalha, as novas tecnologias permitiram reconstruir em três dimensões a ossatura do rei inglês a partir do surpreendente achado de seus restos mortais, faz dois anos, em um estacionamento da cidade de Leicester. Em outras palavras, a descrição física do monarca que o escritor brindou à literatura universal foi pura invenção.
O Ricardo que aos 32 anos perdeu a vida na batalha de Bosworth, enfrentando Enrique Tudor, “tinha a coluna vertebral debilitada, mas não a sobressaía de forma óbvia”, sustenta Piers Mitchell, professor do Departamento de Arqueologia e Antropologia da Universidade de Cambridge e um dos autores do estudo publicado nesta semana pela revista The lancet. Sim padecia escoliose, um desvio lateral da coluna vertebral dentre 65 e 85 graus, mas esse quadro médico não se corresponde com a fisionomia de um corcunda. Os especialista estão convencidos de que foi um “indivíduo ativo” cujo giro “espiral” na coluna não foi impedimento para que atuasse como um grande guerreiro no campo de batalha. Foi o último monarca inglês que morreu combatendo (1485).



Os especialistas lembram agora que os relatos sobre a aparência de Ricardo III que se escreveram durante sua vida o apresentavam –ao contrário da imagem projetada na célebre obra de Shakespeare- como um personagem bem apessoado. Essa descrição ajusta-se ao retrato de um homem “inusualmente esbelto, quase feminino” que se desprendia das primeiras análises científicas feitas em seus restos alguns meses após ser localizados no estacionamento de uma cidade inglesa de províncias. Desde então, a figura desse rei não deixou de se apropriar de manchetes como protagonista de uma história quase incrível.
Primeiro foi encontrado o esqueleto e o crânio em tão incomum localização por uma equipe de arqueólogos, logo a incredulidade de muitos e finalmente a sentença das provas de carbono que permitiram datar os restos entre 1455 e 1540, comparar suas características com os detalhes conhecidos sobre o físico de Ricardo e, sobretudo, comparar seu DNA com o de um descendente direto de sua família. Esse parente do rei inglês é um carpinteiro canadense que vive no Reino Unido há 25 anos, Michael Ibsen, identificado como membro da décima sétima geração de descendentes de Ana de York, a irmã de Ricardo. Seu DNA corresponde com o extraído dos ossos do monarca.
À aceitação geral dessas conclusões seguiu no tempo um embate em torno do enterrodos restos de Ricardo III em grande estilo, o que foi resolvido há uma semana. O último rei da dinastia Plantagenet será finalmente enterrado na catedral de Leicester (centro) e não na cidade setentrional de York, como pretendiam seus descendentes, após a decisão da Alta Corte de Londres na sexta-feira passada.

Javier Marías / O reino da possibilidade

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O reino da possibilidade

Hoje, é raro ver quem se sente vinculado ou preso às suas próprias convicções



JAVIER MARÍAS
15 MAR 2014 - 18:00 COT

Já sabem: uma das definições de "clássico" diz que são obras que, toda vez voltamos a elas, encontramos algo importante que deixamos passar em ocasiões anteriores; ou mesmo obras que, por mais que já a conheçamos, inevitavelmente capturam nossa atenção e nos convidam para ficarmos em sua companhia; se se trata de música, a escutá-la inteira pela enésima vez; se é um quadro, a admirá-lo com fascinação. Mais mérito têm, no meu modo de ver, os romances e os filmes, que até certo ponto confiam na história que contam para nos deixar interessados, e se já sabemos essa história - se acaba bem ou mal, quem morre e quem não morre -, obrigatoriamente perderam um de seus principais atrativos em uma segunda leitura ou uma décima visualização. Que os "argumentos" atuem como meras iscas, e no fundo sejam secundários, demonstram que muita gente relê Dom Quixote, Coração das Trevas ou Madame Bovary sabendo o que é o quê, e lembrando o que os personagens fizeram e como acabaram. Alguém abre em uma página ao acaso e se vê arrastado a ler mais algumas, e depois outras, até continuar, por vezes, até o final. O mesmo acontece com certos filmes: alguém zapeia e em algum canal está passando Intriga Internacional, Rastros de Ódio ou A Felicidade Não se Compra e, apesar de sabê-lo de cor, é muito raro que ele não fique tentado a permanecer ali, com os olhos e a atenção cativados. Sempre há algo que o surpreende, ou que havia esquecido, ou simplesmente deseja assistir mais uma vez à mais perfeita representação.
Também porque, à medida que o tempo passa e essas obras se afastam de nossa contemporaneidade, descobrimos coisas que nos seus dias nos pareciam "normais" e que apenas agora nos demos conta que não são. E como as vemos como se fosse estranhas, temos que decifrá-las a partir do distinto ponto de vista de nossos dias. Há pouco tempo, isso aconteceu comigo com O Homem Tranquilo, de John Ford, de 1952. É um dos meus filmes preferidos (como de tantos cinéfilos), e inclusive escolhi falar sobre ele em um festival de Bordeaux, há não menos de duas décadas. Eu o vi incontáveis vezes desde a infância. Estava passando em uma televisão e não pude evitar ficar até o fim do episódio ou da cena que o acaso me concedeu. John Wayne e Maureen O'Hara obtiveram, finalmente, a permissão para começar seu namoro - o inesquecível Barry Fitzgerald, casamenteiro oficial de Innisfree. Montam em uma carruagem, guiada por este, e são forçados a dar a volta; Fitzgerald os autoriza a descerem e caminharem um ao lado do outro, sem se tocar; ao verem uma bicicleta com dois lugares estacionada, escapam nela, para ficarem sozinhos; chegam a um cemitério, e quando vão se beijar, começa uma tempestade que assusta a mulher; protegem-se como podem, o homem tira a jaqueta para cobri-la, molha a sua camiseta branca e, então, se beijam de verdade pela primeira vez. O que chama à atenção é a expressão, o olhar de Wayne. Estou convencido de que ele foi o ator que melhor soube usar o olhar no cinema, sobretudo sob as ordens de Ford: em um único momento, entende-se o que está acontecendo, e o que se passa não são coisas nem sentimentos simples, mas complexos e conceituais. Seus valores não são valores sem uma mescla; seu ódio não é ódio sem uma mescla; sua indignação não é primária, seu espanto é profundo. É alguém capaz de saber - e de transmitir - que há um antes e um depois, que a partir de um momento, ou uma experiência, ou algumas palavras, nada será o mesmo, começando pelo seu personagem.
O normal, o convencional em uma cena de amor, depois de um primeiro beijo, é que os protagonistas fiquem exultantes de felicidade ou continuem beijando-se com entusiasmo ou com intensidade crescente. Isso não ocorre em O Homem Tranquilo. Wayne abraça O'Hara e vira o rosto, não para a câmera, mas para a frente. E seu olhar parece, a princípio, de tristeza, de lástima, inclusive. Está claro que não é. Em seguida, compreende-se: a seriedade, gravidade, talvez a responsabilidade, como se estivesse dizendo: "oh, agora estou envolvido. É o que desejo, mas chegou a hora e não dá mais para voltar atrás. Ficarei junto dessa mulher, não falharei, vou amá-la e cuidar dela. Darei-lhe a melhor vida que puder e vou dedicar minha existência a isso. Não apenas a isso, mas isso será prioridade, acima de todo o resto. E será incondicional". Já em 1952 deveria ser pouco frequente ver uma reação assim na tela do cinema ou na realidade. Os apaixonados mais recentes tendem a ser rápidos e voam pelo entusiasmo ou pela paixão, "e não fazem mais do que ocultarem mutuamente seus destinos", como escreveu Rilke, com precisão. Na realidade, não é mais raro do que há sessenta anos, eu acho, mas sim no romance, no cinema, no mundo representado, como também só se admitiria estar de volta de tudo. Raro é ver hoje em dia alguém que se sente envolvido ou preso - no melhor sentido dessa palavra - por sua própria convicção, por sua disposição a não falhar, pela responsabilidade que não pode exigir de si mesmo, mas que adquire pelo outro por sua conta e risco e própria vontade. Raro é quem tem o propósito de ser incondicional e pensa, talvez como Wayne sob a tempestade: "Quero tanto essa pessoa que a partir de agora vou prescindir do que mais apreciava, do reino da possibilidade". 
EL PAÍS

Mulheres / Christina Ricci

Donald Trump / A presidência do medo

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Donald Trump

A presidência do medo

Não há nenhum espaço para a esperança na vitória de Donald Trump


DAVID ALANDETE
Nova York 10 NOV 2016 - 11:32 COT






Simpatizantes de Trump no hotel Hilton de Nova York no qual comemoraram sua vitória na terça-feira  EFE


A prova definitiva da saúde de uma democracia é a passagem de poder, a transição da chefia de governo após as eleições, onde candidatos de ideias semelhantes ou diferentes colaboram para que se cumpra a vontade popular expressada nas urnas. O fato de Barack Obama ter prometido trabalhar “de forma muito intensa para que agora ocorra uma transição bem-sucedida” é prova disso. Agora ele e sua equipe trabalharão com profissionalismo para facilitar a chegada ao poder do novo líder da maior potência mundial, um racista misógino, sem experiência de Governo e cujos únicos planos conhecidos são baixar os impostos dos ricos, construir um muro na fronteira com o México e melhorar as relações com Vladimir Putin.
Donald Trump é um perigo, e grave. E por mais que na quarta-feira Hillary Clintontenha lhe desejado sucesso e tenha se oferecido para ajudá-lo no que precise. A mera existência de um presidente Donald Trump coloca em perigo todo um sistema pelo qual desde a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos garantiram o equilíbrio mundial liderando um bloco de democracias ocidentais contra o vasto campo do autoritarismo.
Donald Trump


Para falar claro, metade dos Estados Unidos votou contra os direitos da outra metade. Quem na terça-feira comemorou em Nova York a vitória de Trump comemorou na realidade o triunfo da vulgaridade, da intolerância, do medo e da ignorância. A única certeza sobre Trump é que pode emitir uma opinião e a contrária de acordo com a forma como sopra o vento político e seu estado de ânimo amanhece. Em um só dia pode estar a favor e contra o aborto, o casamento homossexual e a entrada de muçulmanos no país. E além disso, mente quando lhe convém.
É possível, como interpretam muitos analistas hoje, que Trump tenha ganhado porque Hillary Clinton não soube ou não pôde fazê-lo. O novo presidente recebeu menos votos do que Mitt Romney em 2012 e John McCain em 2008, ambos derrotados. Talvez os eleitores tenham castigado também a candidata democrata pelos erros de Barack Obama: pelo caos de sua reforma de saúde, por ter governado às vezes como um republicano moderado e pela retomada das relações com o Irã e Cuba. Pode ser que simplesmente tenha sido uma candidata muito fraca, prejudicada por seu sobrenome e um atávico machismo institucional.
Quem ganha, sem dúvida, é a América branca, esse conceito que parecia ter se tornado obsoleto na presidência de Barack Obama e que retornou com força. Porque se Trump se esforçou em alguma coisa foi em insultar todos os que são diferentes: negros, latinos, mulheres, homossexuais, transexuais e até deficientes. O aumento da participação de homens de raça branca, meia idade e educação básica deu a um magnata com delírios de grandeza as chaves do país, sua cadeira no Salão Oval e o palanque nas Nações Unidas. E tudo com o apoio de grupos supremacistas brancos dos quais não quis se distanciar.
Muitos dos que votaram em Trump são ou foram democratas. Aconteceu no passado. Quando Lyndon B. Johnson conquistou a presidência em 1964 aprovou a lei de direitos civis e acabou com a segregação racista. Os Estados do Sul, até então solidamente democratas, se tornaram republicanos. Restou ao partido as classes médias e baixas, os sindicatos, os mais desfavorecidos, para os quais a ajuda do Estado era a única esperança de não cair abaixo de um nível de dignidade mínimo. O partido deverá analisar o que dois presidentes fizeram por suas bases, Bill Clinton e Barack Obama, cujas políticas econômicas não diferiram muito das de George W. Bush.
Uma época de trevas se aproxima nos Estados Unidos. Não existe forma de adoçar o discurso. Na democracia a soberania do povo é sagrada, mas isso não significa que sempre deixe em um bom lugar os que a exercem. Ainda que essa seja uma decisão de 58 milhões de pessoas, é uma decisão equivocada e injusta. Com sonoros aplausos e muitos votos gloriosas nações se suicidaram. Existe uma responsabilidade coletiva nessas eleições nas quais os fracos ficam mais desprotegidos.
O positivo? Obama o disse em seu primeiro discurso na Casa Branca após o resultado das infelizes eleições de 2016. “O sol voltou a nascer no Leste e não no Oeste”. E ainda assim, no mundo caprichoso da presidência de Trump pode ser que esse novo presidente algum dia tente nos convencer do contrário.


Um muro de democracia anti-Trump

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Um muro de democracia anti-Trump

Sua vitória, legítima, o obriga a respeitar o sistema que o levou ao poder


EL PAÍS
9 NOV 2016 - 18:00 COT


O presidente norte-americano, Barack Obama, junto ao vice-presidente, Joe Biden, durante sua primeira declaração sobre as eleições. MICHAEL REYNOLDS EFE
Após a vitória inesperada de Donald Trump nas eleições norte-americanas, tanto a candidata derrotada, Hillary Clinton, quanto o presidente Barack Obama, concordaram em reconhecer a Trump como legítimo vencedor. A primeira, além disso, também se ofereceu para ajudar o novo presidente a unir o país e, o segundo, a realizar uma transição de poder tão exemplar como a que o beneficiou ao receber a presidência de George W. Bush em 2008. Com essas duas declarações Clinton e Obama exibem seu espírito democrático e sua fé na solidez das instituições da democracia norte-americana.


Precisamente porque duvidamos que Trump teria se comportado de forma tão exemplar se houvesse perdido é que comemoramos um gesto que não só mostra como Clinton e Obama estão acima de alguém como Trump, mas também elimina qualquer possibilidade de abertura de um período de incerteza e deslegitimação que seriam ainda mais prejudiciais do que já representa a vitória de Trump.
Mas admitir a vitória, como observou Hillary Clinton, não significa abdicar da responsabilidade. Embora Trump, em seu discurso de abertura, tenha oferecido um perfil conciliador e moderado, seria ilusório pensar que esse discurso mostra que, depois de alcançada a vitória e de ter chegado à Casa Branca, Trump vai se reinventar como um líder moderado, respeitoso de todos os credos, raças e ideologias. Todos os fatos, promessas e ameaças que pontuam seu caminho até a Casa Branca são tão graves e tão alarmantes que as pessoas de bem nos EUA ou no exterior, longe de conceder um voto de confiança a Trump, devem se unir e lançar uma mensagem de forte rejeição e firmeza contra qualquer tentativa de Trump de — aproveitando sua vitória nas urnas — passar por cima dos direitos básicos dos norte-americanos.

Seria ilusório pensar que o novo presidente vai se reinventar como moderado e respeitoso

A combinação de uma presidência com amplos poderes executivos com um Congresso dominado pelos republicanos (tanto o Senado quanto a Câmara dos Representantes ficaram tingidas de vermelho, a cor republicana) vai significar um verdadeiro teste de estresse para a democracia norte-americana. É hora de que as instituições independentes desse país, do Supremo ao FBI passando pela Reserva Federal, com a ajuda dos meios de comunicação, cumpram seu papel de assegurar que os princípios básicos da democracia norte-americana, incluindo a separação de poderes e a submissão à lei, estejam fora do alcance de um demagogo perigoso como Trump.
É verdade que, para muitos, nos EUA e fora, a escolha de Trump significa um duro golpe ao sonho americano, entendido como a garantia de igualdade de oportunidades dos cidadãos independente de seu credo, raça, sexo, origem ou condição social. Mas embora não confiemos em Trump, acreditamos na força da democracia norte-americana e na crença de que o único império possível é o da lei.

Desconfiamos de Trump, mas estamos confiantes na força da democracia dos EUA

Quanto ao resto do mundo, a atitude deve ser a mesma que desenharam Clinton e Obama: mão estendida para cooperar na resolução dos problemas que envolve a todos, mas firmeza absoluta para exigir que a política externa dos EUA não destrua décadas de compromissos políticos, econômicos e de segurança alcançados depois de muito trabalho. Da mudança climática até a segurança internacional passando pela pobreza, as pandemias ou as leis penais, os desafios que a humanidade enfrenta exigem mais, não menos, governança global, instituições multilaterais e recursos financeiros.
Então preocupa muito que, com Trump, os EUA se voltem para o nacionalismo econômico, usem seus próprios interesses como critério e comecem a desmantelar todo o tecido de acordos que garantem nossa paz e segurança compartilhada. Os líderes populistas do mundo têm todas as razões para aplaudir a vitória de Trump como se fosse própria — os da extrema-direita fizeram isso abertamente, os da extrema esquerda se protegeram atrás de declarações sobre as classes populares —, pois permite que amplifiquem em casa suas reivindicações nacionalistas e soberanistas. Poderíamos facilmente estar vendo o início de uma dinâmica que faria o Brexit empalidecer. Os EUA são a chave da ordem internacional: se essa peça for removida, essa ordem se tornará ipso facto naquilo com que Moscou, Pequim e outras capitais sonham: uma selva, onde vai imperar a lei do mais forte. O mundo também deve estar firme e vigilante.




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