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O mais belo autógrafo de Fernando Pessoa

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Fernando Pessoa, 1928

O mais belo autógrafo de Fernando Pessoa

Um poema do escritor português é descoberto na última página do diário de um intelectual


Javier Martín
Lisboa 14 jun 2016

No baú de Fernando Pessoa não cabe tudo de Fernando Pessoa. Um poema escrito em 1918, quando o escritor tinha 30 anos, foi descoberto no Brasil, segundo o jornal Folha de S. Paulo. Como muitas vezes acontece com as histórias do escritor, o breve poema interessa mais por suas circunstâncias do que pelo texto literário, já publicado, embora em uma versão, como pode ser verificado agora, menos definida.
O advogado brasileiro José Paulo Cavalcanti, maior colecionador de objetos e textos de Pessoa, recebeu de um antiquário uma oferta com um diário de viagens que, em sua última página, incluía um poema de Pessoa. Cavalcanti, autor de Fernando Pessoa, Uma Quase Autobiografia (Editora Record, 2011), o adquiriu para sua coleção sem avaliar a transcendência do poema e se a letra era ou não do genial escritor.
Cada palavra dita é a voz de um morto”, começa Pessoa. “A verdade é que esse poema é como um sinal do destino, um tiro na consciência”, diz Antonio Sáez Delgado, professor da Universidade de Évora e especialista nas obras de Pessoa.
Em 1913, com 13 anos, o futuro intelectual português José Osório de Castro e Oliveira estava viajando no transatlântico König Wilhelm II, do Rio de Janeiro a Lisboa. Para se distrair durante a travessia, pedia aos viajantes que escrevessem em em seu livro de autógrafos. Era 1913, mas a última página, escrita à mão por Pessoa, data de 1918.
Naqueles tempos, os mares não eram atravessados por muitos navios; de fato, em 1901, Pessoa havia embarcado no mesmo König Wilhelm II para se deslocar da África do Sul a Portugal. Por isso, esse barco e os tempos mais tranquilos tornaram possível que o caderno reunisse depoimentos de vários anos. Também não eram frequentes reuniões de intelectuais, de modo que Osório e Pessoa coincidiram em muitas delas, descobriram que haviam viajado juntos no König e acabaram se tornando bons amigos.





CADA PALAVRA DITA É A VOZ DE UM MORTO...


FERNANDO PESSOA
Cada palavra dita é a voz de um morto.
Aniquilou-se quem se não velou
Quem na voz, não em si, viveu absorto.
Se ser Homem é pouco, e grande só
Em dar voz ao valor das nossas penas
E ao que de sonho e nosso fica em nós
Do universo que por nós roçou
Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.
Sáez acrescenta uma coincidência: “Osório era filho de Ana de Castro, republicana e feminista, e um dos contatos mais próximos em Lisboa de Carmen de Burgos, cujo pseudônimo era Colombine, e de Ramón Gómez de la Serna. Na verdade, Colombine também aparece no caderno. Carmen de Burgos publicou uma série de artigos em 1920 e 1921 na revistaCosmópolis, de Madri, dedicados à nova literatura portuguesa e escreve, em As Escritoras, de 1921, sobre Ana de Castro Osório. Um novo elo que coloca Pessoa e os escritores espanhóis no mesmo contexto”.



“Há três ou quatro versões, mas este verso é mais bonito, mais definitivo”, destaca o especialista Joaquín Pizarro

Desvendada a história do livro de autógrafos, resta saber a importância literária. Joaquín Pizarro, autor da versão mais recente de O Livro do Desassossego, organizado em ordem cronológica, confirma a autenticidade do texto e da caligrafia, mas esclarece que não é inédito.
O poema foi publicado pela primeira vez em 2005, pela Casa da Moeda, emVolume de Poesia 1915-1920, que compila 300 poemas. “É uma nova versão, diferente, mais completa, que resolve problemas de leitura, e isso para mim é importante”, destaca Pizarro, que está em Lisboa para dar um seminário na fundação do escritor. “Há três ou quatro versões, mas este verso é mais bonito, mais definitivo.”
Os primeiros dois versos do texto descoberto são iguais aos já publicados, mas os 10 restantes sofreram uma grande mutação, ao ponto de alterar o sentido geral do poema.


“Haverá mais inéditos. A família ainda tem muito material; nem tudo foi leiloado em 2008; estimo que há 800 documentos e alguns estão sendo vendidos por debaixo do pano”
Pizarro afirma que não era raro Pessoa escrever em objetos de outras pessoas. “Por isso utilizava muito os livros de autógrafos. Já temos dois ou três casos, como o livro de assinaturas de Moutinho-Almeida, onde trabalhou, ou em bilhetes com os quais pagava suas águas-ardentes nos bares.”
O colombiano é um dos grandes especialistas em pessoalogia, atualizando edições com base em descobertas nesse baú de originais de Pessoa, que parece infinito. Pizarro revolucionou a pesquisa sobre o escritor ao organizar seus textos de forma cronológica, e não por assunto ou pseudoautores. Nesta semana, Pizarro apresenta nas livrarias de Lisboa sua versão de Obra Completa de Alberto Caeiro, um dos heterônimos nos quais Pessoa se transfigurava.
“Já vejo a descoberta com outra perspectiva”, disse Pizarro, “porque ainda há milhares de inéditos”. “Seria possível publicar um por dia; mas este é interessante por pertencer a uma época em que Pessoa escrevia muito.”
Pizarro anuncia mais novidades sobre Pessoa: “Haverá mais inéditos. A família ainda tem muito material; nem tudo foi leiloado em 2008; embora recentemente tenha doado 80 volumes, estimo que ainda existam mais 800, e alguns estão sendo vendidos por debaixo do pano”.



Hans Christian Andersen já escrevia contos de fadas quando era rapaz

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Andersen dedicou este conto a uma amiga de infância BJARNE KOBURG/MUSEU DA CIDADE DE ODENSE/AFP

Hans Christian Andersen já escrevia contos de fadas quando era rapaz


The Tallow Candle foi descoberto num espólio de família que está à guarda do Arquivo Nacional da Dinamarca. Andersen dedicou este que é o seu primeiro conto à sua confidente de infância

Hans Christian Andersen

Conhecemos Hans Christian Andersen, um dos nomes da literatura infantil mais lidos de sempre, de contos como A Pequena SereiaO Patinho Feio e A Princesa e a Ervilha. Uns dramáticos, outros divertidos, mas todos inesquecíveis. Agora um historiador dinamarquês vem defender que pode acrescentar-se mais um título à bibliografia do autor de O Rei vai Nu.
The Tallow Candle (A Vela de Sebo, diríamos em português) foi encontrado em Outubro por Esben Brage no fundo de um caixa do arquivo da família Plum, com cerca de 1000 documentos, conta esta quinta-feira o jornal dinamarquês Politike, citado pelo britânico The Guardian. O historiador de 72 anos estava a fazer pesquisas numa das dependências do Arquivo Nacional da Dinarmarca, na cidade de Odense, a terceira maior do país, quando algo lhe chamou a atenção. Tratava-se de um pequeno documento amarelado que, dois meses mais tarde, viria a ser autenticado por especialistas na obra de Hans Christian Andersen.
“Sabia que tinha uma coisa especial nas mãos”, disse Brage ao Politike. “Como já tive nas mãos milhares de documentos históricos desenvolvi uma espécie de sétimo sentido que diz ‘espera lá, este é especial e não mais um para pôr de lado’.”
O manuscrito inédito, que agora está no Museu da Cidade de Odense, onde nasceu Andersen, conta a história de uma vela que não sabe qual é o seu lugar no mundo até que um pavio a encontra e ela se acende para iluminar.
“A vela de sebo tinha encontrado o seu lugar na vida – e depois de lhe mostrarem que era uma vela a sério, brilhou durante muitos anos”, contribuindo para a sua felicidade e a de “todas as criaturas à sua volta”, escreve o rapaz que provavelmente estava longe de se imaginar um autor respeitado.
O documento não é, no entanto, um original do autor de A Menina dos Fósforos, mas a única cópia conhecida daquele que os especialistas acreditam ser o primeiro conto de fadas do autor, escrito quando ainda andava na escola e dedicado a madame Bunkleflod, a sua confidente de infância, que viria a ser muito próxima da família Plum. É por isso que o pequeno fólio descoberto por Esben Brage tem uma segunda dedicatória, desta vez dos Bunkleflod para os Plum. O original não foi ainda encontrado.
“Esta é uma descoberta extraordinária”, disse ao jornal dinamarquês Enjar Stig Askaard, conservador do museu de Odense. “Em parte porque é o primeiro conto de fadas de Andersen, em parte porque mostra que ele se interessava por este universo quando era rapaz, muito antes de se tornar escritor.” Askaard não tem dúvidas de que este é um conto de Andersen, assim como Bruno Svindborg, da Biblioteca Real da Dinamarca, e o professor Johan de Myliu, dois estudiosos da obra do escritor.
Será que, daqui a uns tempos, poderemos ter na estante esta história de Andersen ao lado de O Soldadinho de Chumbo ou de A Polegarzinha?



Hans Christian Andersen / A caixa de fósforos

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Hans Christian Andersen
A caixa de fósforos



InicialU.svgm soldado vinha marchando pela estrada: esquerda, direita!, esquerda, direita! Ele caminhava com sua mochila nas costas, e uma espada na bainha, estava voltando da guerra, e agora estava indo pra casa.
Enquanto andava, ele encontrou uma bruxa velha e assustadora pelo caminho. Ela era muito feia, seus beiços caiam até o peito, e ela parou e disse:
— “Boa Noite, soldado! que bela espada você tem, e que mochila bonita você está carregando! você é um soldado de verdade, e por isso você terá todo o dinheiro que precisar."
— “Obrigado, bruxa velha,” disse o soldado.
— “Você está vendo aquela árvore bem alta,” disse a bruxa, apontando para uma árvore que estava ali perto.
— “Então, ela é totalmente oca por dentro, e através desse buraco você pode subir até o topo da árvore, então, você encontrará uma passagem, e através dessa passagem você deverá descer até uma grande profundidade. Eu vou amarrar uma corda ao redor do seu corpo, para que eu possa puxá-lo de volta quando você gritar para que eu faça isso.”
— “Mas o que eu tenho de fazer na árvore?”, perguntou o soldado.
— “Pegar o dinheiro,” respondeu ela, “porque você deve saber chegar ao fundo debaixo da árvore, onde você encontrará um lugar enorme, todo iluminado por trezentas lampiões, então, você verá três portas, as quais podem ser facilmente abertas, pois as chaves estão todas nas fechaduras. Ao entrar na primeira sala, para a qual as portas conduzem, você encontrará uma caixa enorme, que fica no meio da sala, e um cachorro estará sentado em cima dessa caixa, esse cachorro tem dois olhos grades do tamanho de dois pires. Mas você não precisa ter medo dele, eu darei a você o meu avental xadrez azul, você deverá estender no chão o meu avental, e depois corajosamente pegar o cachorro e colocá-lo em cima do avental.”
— “Aí você pode abrir a caixa, e pegar todas as moedas que precisar, lá estarão apenas as moedas de cobre, mas se você preferir moedas de prata, você deve ir para a segunda sala. Nessa sala você encontrará um outro cachorro, com olhos tão grandes como as rodas de um moinho, mas não deixe que esse cachorro o assuste. Coloque-o sobre o meu avental, e depois pegue todo o dinheiro que precisar. Se, entretanto, você preferir moedas de ouro, entre na terceira sala, onde você encontrará mais uma caixa cheia delas. O cão que estará sentado sobre essa caixa é muito bravo, seus olhos são do tamanho de uma torre, mas não se preocupe com ele. Se ele também for colocado sobre o meu avental, ele não fará mal a você, e você pode tirar da caixa todo ouro que precisar.”
— “Esta é uma história interessante,” disse o soldado, “mas o que eu tenho de fazer para você, pois, é claro, que você não está dizendo tudo isso de graça.”
— “Não,” disse a bruxa, “eu não quero nem um centavo. Prometa-me apenas que você me trará uma caixa de fósforo velha, que a minha avó esqueceu da última vez que esteve por lá.”
— “Muito bem, eu prometo. Agora amarre a corda no meu corpo.”
— “Ei-la aqui,” respondeu a bruxa, “e aqui está o meu avental xadrez azul.”
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ssim que a corda foi amarrada, o soldado subiu na árvore, e desceu pelo buraco até o fundo lá embaixo, e ali ele encontrou, como a bruxa havia lhe dito, uma sala enorme, onde muitas centenas de lampiões estavam acesos. Então, ele abriu a primeira porta.
— “Ah,” lá estava o cachorro, com os olhos grandes como pires, arregalados para ele.
— “Você é um cara legal,” disse o soldado, pegando-o e colocando-o dentro do avental da bruxa, enquanto ele enchia seus bolsos com as muitas peças que estavam guardadas dentro da caixa. Então, ele baixou a tampa, colocou o cachorro em cima caixa novamente, e caminhou para a outra sala. E, de novo, lá estava o cachorro com os olhos tão grandes como as rodas de um moinho.
— “Você não deveria olhar para mim desse jeito,” disse o soldado, “isso fará com que seus olhos vertam água,” e então, ele colocou o cachorro sobre o avental, e abriu a caixa. Mas quando ele viu a grande quantidade de moedas de prata que ela continha, ele rapidamente jogou fora todas as moedas de cobre que tinha pego, e encheu seus bolsos e a sua mochila com toda prata que conseguiu.
Então, ele foi para a terceira sala, e lá estava o cachorro horroroso, seus olhos eram, de verdade, grandes e altos como torres, e eles giravam e giravam como rodas em sua cabeça.
— “Bom dia,” disse o soldado, fazendo continência para o cachorro, pois jamais tinha visto uma coisa daquela na sua vida. Porém, depois de olhar para ele mais de perto, pensou que o cachorro era educado o bastante, então, ele o colocou no chão, e abriu a caixa. Nossa Senhora! quanto ouro havia ali! o bastante para comprar todos os pirulitos da mulher que vendia doces, todos os soldados de chumbo, os chicotes, e cavalinhos de balanço da cidade e até do mundo todo.
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avia, realmente, uma grande quantidade de dinheiro. Então, o soldado jogou fora todas as moedas de prata que ele tinha pegado, e encheu seus bolsos e sua mochila com ouro no lugar delas, e não só os bolsos e a sua mochila, mas também o quepe e as botas que ele usava, tanto que ele mal conseguia andar.
Ele estava muito rico agora; então, ele colocou de volta o cachorro em cima da caixa, fechou a porta, e gritou lá de baixo:
— “Pode puxar, agora, sua bruxa velha.”
— “Você pegou a caixa de fósforos?” perguntou ela.
— “Não, eu estava me esquecendo.” Então, ele voltou e pegou a caixa de fósforos, e então, a bruxa puxou ele para fora da árvore, e lá estava ele de novo na estrada, com seus bolsos, mochila, quepe e botas cheios de ouro.
— “O que você vai fazer com a caixa fósforos?” perguntou o militar.
— “Não te interessa,” respondeu a bruxa, “ você já tem o dinheiro, agora me dê a caixa de fósforos.”
— “De jeito nenhum,” disse o soldado, “se você não me disser o que você vai fazer com ela, eu puxo a minha espada e corto a tua cabeça.”
— “Não,” disse a bruxa.
O soldado imediatamente cortou a cabeça da bruxa, e ali ficou ela caída no chão. Depois ele amarrou todo o dinheiro que havia pegado no avental dela, e pendurou o saco nas costas, colocou a caixa de fósforos no bolso, e partiu para a cidade mais próxima. Era uma cidade muito bonita, e ele se hospedou na melhor estalagem, e pediu um jantar com os seus pratos favoritos, porque agora ele estava rico e tinha muito dinheiro.
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criado, que limpava as suas botas, achava estranho que um homem tão rico usasse um par de botas tão velhas, porque ele ainda não havia comprado botas novas. No dia seguinte, todavia, ele foi atrás para comprar roupas novas e botas apropriadas, então, o soldado logo se transformou num cavalheiro refinado, e as pessoas o visitavam, e lhe contavam todas as maravilhas que podiam ser vistas na cidade, e também lhe falaram sobre a bela filha do rei, a princesa.
— “Onde é que eu posso vê-la?” perguntou o soldado.
— “Ela não pode jamais ser vista,” disseram eles, “ela vive num imenso castelo de bronze, cercado por muralhas e torres. Ninguém, senão o rei, pode entrar ou sair do castelo, pois existe uma profecia de que ela irá se casar com um soldado comum, e o rei não quer nem pensar num casamento como esse.”
— “Eu gostaria muito de vê-la,” pensou o soldado, mas ele não conseguia obter permissão para visitá-la. Enquanto isso, ele passava tardes agradáveis, ia ao teatro, passeava a cavalo pelos jardins do rei, e dava muito dinheiro para as pessoas pobres, e isso era muito bom para ele, pois, ele se lembrava dos velhos tempos quando ele não tinha nem um centavo para viver. Agora ele era rico, usava roupas finas, tinha muitos amigos, e todos falavam que ele era boa gente e um verdadeiro cavalheiro, e assim ele ficava muito satisfeito.
Mas o dinheiro dele não ía durar para sempre, e como ele gastava e desperdiçava muito todos os dias, e não recebia nenhum, de repente ele percebeu que só haviam duas moedas. Então, ele foi obrigado a deixar os aposentos elegantes, e viver num pequeno sótão debaixo do telhado, onde ele mesmo tinha que limpar suas botas, e até mesmo remendá-las com uma agulha grande.
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enhum dos seus amigos vinham vê-lo, as escadas eram muito altas para subirem. Numa noite escura, quando ele não tinha nem uma moedinha para comprar uma vela, então, ele se lembrou que havia um toco de vela dentro da caixa de fósforos, que ele encontrou no buraco da árvore.
Ele encontrou a caixa de fósforos, porém, mal ele havia riscado um palito para que fagulhas fossem geradas e a porta subitamente se abriu e o cachorro, com olhos grandes do tamanho de um pires, que ele tinha visto lá nas profundezas da árvore, estava diante dele, e disse:
— “Quais são as suas ordens, meu amo?”
— “Olá,” disse o soldado, “esta caixa de fósforos me será útil, se ela puder me atender em tudo aquilo que eu preciso.”
— “Ora, traga para mim algum dinheiro,” disse o soldado para o cachorro.
O cachorro saiu por um momento, e logo voltou, carregando um enorme saco de moedas de cobre na boca. O soldado, então, percebeu logo porque aquela caixa de fósforos era tão importante. Se tendo riscado o fósforo uma vez, o cachorro que estava na caixa de moedas de cobre apareceu, então, se ele riscasse duas vezes, apareceria o cachorro que estava em cima da caixa com moedas de prata, e três vezes, o cachorro que era alto como torres, que vigiava todo o ouro. O soldado agora tinha muito dinheiro, ele voltou a morar em seus aposentos elegantes, e tornou a aparecer com roupas finas e caras, de modo que os seus amigos voltaram a visitá-lo e repetir tudo o que faziam antes.
Depois de algum tempo ele começou a pensar que era muito estranho que ninguém pudesse olhar para a princesa.
— “Todos dizem que ela é linda,” pensava consigo mesmo, “mas de que adianta tudo isso se ela fica confinada dentro de um castelo de bronze cercado por tantos muros e torres. Será que eu conseguiria encontrar um jeito de vê-la? Aí ele se lembrou, “onde está a minha caixa de fósforos? Então, ele riscou uma faísca e num instante o cachorro, com olhos do tamanho de um pires apareceu diante dele:
— “São meia noite,” disse o soldado, “mas eu gostaria muito de ver a princesa, ainda que seja por alguns momentos.”
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cachorro desapareceu instantaneamente, e antes que o soldado pudesse olhar em volta, o cachorro retornou com a princesa. Ela estava deitada nas costas do cachorro, e era tão linda, que qualquer um que a olhasse saberia que ela era uma princesa real. O soldado não conseguiu deixar de dar um beijo nela, como verdadeiro soldado que era. Depois o cachorro retornou com a princesa, mas, de manhã, durante o café da manhã do rei e da rainha, ela contou a eles que tinha tido um sonho curioso durante a noite, com um cachorro e um soldado, e que ela tinha sido levada nas costas de um cachorro, e sido beijada pelo soldado.
— “Essa é uma história muito bonita, de fato,” disse a rainha. Então, na noite seguinte, uma das antigas damas da corte ficou vigiando ao lado da cama da princesa, para descobrir se tudo aquilo ela tinha sonhado mesmo, ou se poderia ser alguma outra coisa.
O soldado desejava muito ver a princesa mais uma vez, e então, ele mandou que o cachorro novamente fosse buscá-la durante a noite, e a trouxesse correndo o mais rápido que ele pudesse. Mas a velha senhora colocou botas à prova d'água, e correu atrás do cachorro tão rápido quanto podia, e descobriu que ele levava a princesa até uma casa grande. Ela achou que seria mais fácil se lembrar do lugar se ela fizesse uma cruz grande na porta com um pedaço de giz.
Então, ela voltou para casa e dormiu, e o cachorro rapidamente voltou com a princesa. Mas quando ele viu que uma cruz tinha sido feita na porta da casa, onde morava o soldado, ele pegou um outro pedaço de giz e fez cruzes em todas as casas da cidade, para que a dama de companhia não conseguisse descobrir a porta onde a princesa havia estado.
Na manhã seguinte, bem cedo, o rei e a rainha acompanharam a dama e todos os criados da casa, para verem onde a princessa tinha sido levada.
— “É aqui,” disse o rei, quando chegaram na primeira porta onde havia uma cruz nela.
— “Não, meu querido marido, deve ser aquela,” disse a rainha, apontando para uma segunda porta que também tinha uma cruz.
— “E aqui tem uma, e ali tem outra!” todos exclamavam, pois havia cruzes em todas as portas e em todas as direções.
Então, eles acharam que seria inútil continuar procurando. Mas a rainha era uma mulher muito inteligente, ela sabia fazer muito mais coisas do que simplesmente andar de carruagem. Ela pegou a sua grande tesoura de ouro, cortou um pedaço de seda em quadradinhos, remendou tudo, e fez uma linda sacolinha. Ela encheu a sacola com grãozinhos de trigo, e amarrou a sacola no pescoço da princesa, depois ela fez um pequeno furo na sacola, para que o trigo fosse espalhado pelo chão quando a princesa fosse levada.
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urante a noite, o cachorro veio novamente e levou a princesa nas costas, e correu com ela até o soldado, que a amava muito, e desejava que ele fosse o príncipe, para que ele pudesse tê-la como esposa. O cachorro não percebeu como o trigo escorria da sacola por todo o caminho desde as muralhas do castelo até a casa do soldado, e até mesmo da janela, onde ele havia subido com a princesa.
Logo de manhã, o rei e a rainha descobriram onde a filha deles havia estado, e o soldado foi levado e colocado numa cela. Oh, como era triste e enfadonho ficar sentado ali, e as pessoas diziam para ele:
— “Amanhã você vai ser enforcado.” Essa não era uma notícia muito agradável, e além de tudo, ele havia esquecido a caixa de fósforos na estalajem. De manhã cedo ele podia ver pelas grades da janela a correria das pessoas na cidade para assistirem ao seu enforcamento, ele ouvia os tambores tocando e via quando os soldados marchavam.
Todos estavam afoitos para assistir, quando um aprendiz de sapateiro, usando avental e sapatos de couro, galopava a toda velocidade, então, um de seus sapatos caiu do seu pé e bateu de encontro a parede onde o soldado estava olhando pelas grades da janela.
— “Olá, aprendiz de sapateiro, você não precisa ter tanta pressa,” gritou o soldado para ele.
— “Não haverá nada para ver até eu chegar lá, mas se você for correndo até a casa onde eu moro, e me trouxer a minha caixa de fósforos, eu lhe darei quatro moedas, mas você tem de ir lá o mais rápido que puder.”
O aprendiz de sapateiro gostou da ideia de ganhar quatro moedas, então, ele foi bem correndo e trouxe a caixa de fósforos, e a entregou para o soldado.
E agora nós vamos ver o que aconteceu.
Fora da cidade uma grande forca havia sido erigida, e em torno do patíbulo estavam os soldados e vários milhares de pessoas. O rei e a rainha estavam sentados nos tronos de frente para os juízes e de todo o conselho.
O soldado já estava no cadafalso, mas quando eles estavam para colocar a corda no pescoço dele, ele disse que um pedido inocente frequentemente era concedido a um pobre criminoso antes de ser morto. Ele desejava fumar um charuto, porque esse seria o último charuto que ele teria o prazer de fumar antes de morrer.
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rei não podia recusar este pedido, então, o soldado pegou a sua caixa de fósforos, e riscou fogo uma vez, duas vezes, três vezes, — e num segundo apareceram todos os cães, — aquele que tinha os olhos grandes do tamanho de um pires, aquele que os olhos eram tão grande como as rodas de um moinho, e o terceiro, cujos olhos eram mais altos que uma torre.
— “Me ajudem agora, eu não posso ser enforcado,” gritou o soldado.
E todos os cachorros pularam em cima dos juízes e de todos os conselheiros, pegou um pelas pernas, e outro pelo nariz, e foram jogado para cima a muitos metros de altura, e quando eles cairam eles ficaram todos destroçados.
— “Não toquem em mim,” disse o rei. Mas o cachorro maior pegou o rei, e também a rainha, e os jogou em cima dos outros. Então, os soldados e todas as pessoas ficaram com medo, e gritavam:
— “Meu bom soldado, você será o nosso rei, e você se casará com a bela princesa.”
Então, eles colocaram o soldado em cima da carruagem do rei, e os três cães corriam na frente e gritavam:
— “Viva!” e as crianças assobiavam com os dedos, e os soldados apresentavam as armas. A princesa saiu do castelo de bronze, e se tornou rainha, e ela gostou muito.
As festividades para o casamento duraram uma semana inteira, e os cães se sentaram na mesa, e ficaram de olhos arregalados.

8 de Maio de 1835




Hans Christian Andersen / O Pequeno Cláudio e o Grande Cláudio

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Hans Christian Andersen


Numa aldeia viviam dois homens que tinham o mesmo nome. Os dois eram chamados de Cláudio. Um deles tinha quatro cavalos, mas o outro tinha somente um; de modo que para diferenciá-los, as pessoas chamavam o dono dos quatro cavalos de, "O Grande Cláudio," e aquele que possuía somente um de, "Pequeno Cláudio." Agora nós vamos saber o que aconteceu com eles, porque esta é uma história verdadeira.


Durante a semana toda, o pequeno Cláudio era obrigado a arar as terras para o Grande Cláudio, e emprestar o seu único cavalo; e uma vez por semana, no domingo, o Grande Cláudio emprestava para ele os seus quatro cavalos. Então, o pequeno Cláudio podia usar e abusar de todos os cinco cavalos, porque naquele dia era como se todos eles lhe pertencessem. O sol brilhava poderoso, e os sinos da igreja tocavam alegremente a medida que as pessoas passavam, vestidas com seus melhores trajes, trazendo o livro de orações debaixo dos braços. Todos estavam indo para ouvir o pastor fazer o sermão. Eles viam o pequeno Cláudio arando com seus cinco cavalos, e ele estava tão orgulhoso de usar o chicote, e dizia, "Força, meus cinco cavalos."

"Você não deve falar assim," disse o grande Cláudio; "pois somente um deles pertence a você." Mas o pequeno Cláudio esquecia logo o que ele tinha de dizer, e quando alguém passava ele gritava, "Força, meus cinco cavalos!"

"Ora, eu gostaria que você não dissesse isso novamente," disse o grande Cláudio; "pois se o fizer, eu darei um golpe tão grande na cabeça do seu cavalo, que ele vai cair morto no mesmo lugar, e você nunca mais o verá."

"Prometo que nunca mais vou falar isso," disse o outro; mas assim que as pessoas passavam, e balançavam a cabeça para ele, e lhe diziam "Bom Dia," ele ficava tão satisfeito, e pensava como ele parecia poderoso com cinco cavalos arando o seu campo, que ele voltava a gritar novamente, "Força, todos os meus cavalos!"

"Deixa que eu comando os cavalos para você," disse o grande Cláudio; e pegando um martelo, golpeou na cabeça o único cavalo do pequeno Cláudio, o qual caiu morto instantaneamente.

"Oh, agora eu não tenho nenhum cavalo," disse o pequeno Cláudio, chorando. Pouco depois, ele retirou a pele do cavalo morto, e a deixou para secar ao vento. Depois, ele enfiou a pele seca dentro de um saco, e, colocou-a no ombro, e foi até a cidade vizinha para vender a pele do cavalo. O caminho a percorrer era muito longo, e ele tinha de passar no meio de uma floresta escura e tenebrosa. Não demorou muito e despencou uma tempestade, e ele perdeu o caminho, e antes que ele descobrisse o caminho certo, a noite chegou, e o caminho para a cidade mais próxima era longo, e para retornar para casa também já não era mais possível.

Perto da estrada havia uma fazenda muito grande. Do lado de fora se via que as janelas estavam fechadas, mas viam-se luzes pelas fendas da janela no alto. "Eu vou pedir permissão para passar esta noite aqui," pensou o pequeno Cláudio; então ele se aproximou da porta e bateu. A esposa do fazendeiro abriu a porta; mas quando ela soube o que ele queria, ela pediu para que ele fosse embora, pois o seu marido não iria permitir que ela autorizasse a entrada de estranhos. "Então eu sou obrigado a me deitar aqui fora," disse o pequeno Cláudio para si mesmo, assim que a esposa do fazendeiro fechou a porta na cara dele.

Perto da fazenda havia grandes montes de feno, e entre a casa e os montes de feno havia uma pequena cobertura, feita de palha. "Eu vou ficar deitado aqui," disse o pequeno Cláudio, assim que avistou a cobertura; "terei uma cama deliciosa, mas eu espero que a cegonha não desça até aqui e meta o bico nas minhas pernas;" porque em cima do telhado vivia uma cegonha, que havia feito um ninho ali. Então o pequeno Cláudio subiu até o teto da cobertura, e enquanto ele buscava melhor para se acomodar, ele descobriu que as janelas de madeira, que estavam fechadas, dispunham de frestas, de modo que ele podia ver todo o recinto, onde havia uma mesa enorme disposta com vinho, carne assada, e um peixe magnífico.

A esposa do fazendeiro e o sacristão estavam sentados juntos à mesa; e ela enchia o copo dele, e servia peixe a ele com abundância, que parecia ser seu prato favorito. "Ah, se eu pudesse comer um pouquinho, também," pensou o pequeno Cláudio; e então, quando ele esticou o seu pescoço em direção à janela, ele pode ver uma torta grande e apetitosa, — realmente, eles estavam degustando um delicioso banquete diante dele.

Nesse momento, ele ouviu o barulho de alguém que descia a estrada, e se dirigia para a fazenda. Era o fazendeiro que estava voltando para casa. Ele era um bom homem, porém, tinha um preconceito muito estranho, — ele não podia ver um sacristão. Se um aparecesse na sua frente, ele ficava subitamente furioso. Era por isso então, que o sacristão tinha ido visitar a esposa do fazendeiro durante a ausência do marido dela, e a bondosa mulher havia colocado para servir a ele o melhor que ela tinha na casa para comer.

Quando ela ouviu que o fazendeiro estava chegando ela ficou assustada, e pediu ao sacristão para que se escondesse dentro de um grande armário vazio que havia no recinto. Assim fez ele, pois ele sabia que o marido dela não suportava ver um sacristão. A mulher então pegou o vinho rapidamente, e escondeu todo o resto do banquete dentro do forno; pois se o seu marido tivesse visto tudo, ele iria querer saber porquê eles haviam sido trazidos ali.

"Oh, que pena," suspirou o pequeno Cláudio no alto do telhado, assim que viu todas aquelas delícias serem guardadas.

"Tem alguém aí em cima?" perguntou o fazendeiro, olhando para cima e descobrindo o pequeno Cláudio. "Porque você está deitado aí? Desça, e entre na casa comigo." Então o pequeno Cláudio desceu e contou ao fazendeiro que ele havia se perdido na floresta e solicitou a acolhida por uma noite.

"Tudo bem," disse o fazendeiro; "mas, primeiro, precisamos comer alguma coisa."

A mulher recebeu os dois com a máxima cordialidade, pendurou a roupa em cima de um móvel grande, e colocou diante deles um prato com mingau de aveia. O fazendeiro estava com muita fome, e comeu o seu mingau com grande apetite, mas o pequeno Cláudio não conseguia parar de pensar nos deliciosos assados, peixes e tortas, os quais ele sabia estarem no forno. Sob a mesa, aos seus pés, ficava o saco contendo a pele de cavalo, que ele pretendia vender na cidade próxima.

Agora o pequeno Cláudio não desejava de modo algum saborear o mingau, então ele pisou com o seu pé no saco que estava debaixo da mesa, e o couro seco fez um ruido bem alto. "Silêncio!" disse o pequeno Cláudio para o seu saco, ao mesmo tempo em que dava outro pisão no saco, foi quando se ouviu um rangido ainda mais alto.

"Ei! o que você tem dentro do saco!" perguntou o fazendeiro.

"Oh, é um saco mágico," disse o pequeno Cláudio; "e ele está dizendo que nós não precisamos comer o mingau, pois ele está dizendo que o forno está cheio de assados, peixes, e tortas."

"Maravilha!" disse o fazendeiro, levantando-se e abrindo a porta do forno; e lá estavam as deliciosas guloseimas escondidas pela esposa do fazendeiro, mas que ele imaginava tinham sido descobertas pelo saco mágico que estava debaixo da mesa. A mulher não ousou dizer nada; então ela colocou tudo na frente deles, e os dois comeram o peixe, a carne, e a torta.

Então o pequeno Cláudio deu outro pisão no saco, e ele rangiu como antes. "O que ele está dizendo agora?" perguntou o fazendeiro.

"Ele está dizendo," respondeu o pequeno Cláudio, "que há três garrafas de vinho para nós, colocadas ali no canto, perto do forno."

Então a mulher foi obrigada a trazer o vinho também, que ela tinha escondido, e o fazendeiro bebeu até ele começar a ficar feliz. Ele havia gostado do tal saco mágico que o pequeno Cláudio havia trazido ali. "Ele é capaz de adivinhar coisas ruins?" perguntou o fazendeiro. "Eu gostaria de ver isso agora que estou feliz."

"Oh, sim!" respondeu o pequeno Cláudio, "o meu saco mágico pode fazer qualquer coisa que eu lhe pedir, — não é mesmo?" perguntou ele, ao mesmo tempo em que pisava no saco até que ele rangesse. "Está ouvindo? ele respondeu 'Sim,' mas o saco mágico receia que nós não vamos querer olhar para ele."

"Oh, mas eu não tenho medo. Como é a cara dele?"

"Bem, ele é meio parecido com um sacristão."

"Deus me livre!" disse o fazendeiro, "então ele deve ser muito feio. Você sabia que eu não suporto ver a cara de um sacristão. Todavia, isso não importa, quero saber quem ele é; ou não vou me importar. No entanto, embora eu tenha coragem, não deixe que ele se aproxime muito de mim."

"Tudo bem, mas antes eu preciso consultar o saco mágico," disse o pequeno Cláudio; então ele pisou no saco, e baixou a orelha para ouvir.

"O que ele está dizendo?"

"Ele está dizendo para que você vá e abra aquele armário grande que está ali no canto, e você verá o tinhoso agachado lá dentro; porém, você deve segurar a porta com firmeza, para que ele não possa fugir."

"Você pode vir me ajudar a segurá-lo?" disse o fazendeiro, indo em direção ao armário onde a sua esposa havia ocultado o sacristão, que agora estava lá dentro, muito assustado. O fazendeiro abriu a porta bem devagar e deu uma espiada.

"Oh," exclamou ele, saltando para trás, "Eu vi, e ele é exatamente como o nosso sacristão. Como ele é assustador!" Então, depois disso, ele foi obrigado a beber mais um gole, e eles se sentaram e beberam até tarde da noite.

"Você precisa vender o seu saco mágico para mim," disse o fazendeiro; "peça quanto quiser, eu pago; na verdade, eu lhe daria uma grande quantia em ouro."

"Não, na verdade, eu não posso," disse o pequeno Cláudio; "imagine o que eu poderia deixar de lucrar se eu me desfizesse deste saco mágico."

"Mas eu gostaria de comprá-lo," disse o fazendeiro, continuando com sua insistência.

"Bem," disse, finalmente, o pequeno Cláudio, "como você foi generoso me oferecendo uma noite de hospedagem em sua casa, eu não vou recusar; você pode ficar com o saco mágico por uma quantia em dinheiro, mas eu desejo o valor integral."

"Sem dúvida você receberá," disse o fazendeiro; "mas você deve levar o armário também. Eu não o quero aqui em casa nem mais uma hora; quem poderá afirmar que o tinhoso ainda não esteja lá dentro."

Então o pequeno Cláudio deu ao fazendeiro o saco contendo o couro do cavalo morto, e recebeu em troca uma grande quantia em dinheiro — integralmente. O fazendeiro lhe ofereceu também um carrinho de mão para que ele levasse o armário e o ouro.

"Passe bem," disse o pequeno Cláudio, a medida que ele se distanciava com o dinheiro e o pesado armário, onde o sacristão ainda estava escondido. De um lado da floresta havia um rio grande e profundo, a água corria com tanta velocidade que eram poucos os que conseguiam nadar contra a correnteza. Uma ponte nova havia sido construída nos últimos dias para atravessá-lo, e no meio desta ponte o pequeno Cláudio parou, e disse, bem alto para que o sacristão o ouvisse, "Agora, o que devo fazer com este armário inútil; ele é tão pesado como se estivesse cheio de pedras: eu ficarei cansado se eu o continuar carregando, então eu devo jogá-lo no rio; se ele vier flutuando atrás de mim até a minha casa, tudo bem, se não, ele não me será necessário."

Então ele pegou o armário na mão e o levantou levemente, como se fosse jogá-lo dentro do rio.

"Não, não faça isso,"gritou o sacristão de dentro do armário; "primeiro me deixe sair."

"Oh," exclamou o pequeno Cláudio, fingindo estar assustado, "ele ainda está lá dentro, não está? Então eu devo jogá-lo no rio, para que ele se afogue."

"Oh, não; oh, não," exclamou o sacristão; "Eu lhe darei uma grande quantidade em dinheiro se você me deixar sair."

"Porquê, essa é uma outra questão," disse o pequeno Cláudio, abrindo o armário. O sacristão saiu com dificuldade, empurrou o armário vazio para dentro da água, e foi para sua casa, então ele pegou uma grande quantidade de ouro e a ofereceu ao pequeno Cláudio, que já havia recebido a mesma quantidade por parte do fazendeiro, de modo que agora ele tinha um barril cheio.

"Eu fui muito bem pago pelo meu cavalo," disse o pequeno Cláudio quando ele chegou em casa, ele entrou no seu quarto, e derramou todo o dinheiro formando um amontoado no assoalho. "Sem dúvida, o grande Cláudio ficará irritado quando ele descobrir como eu fiquei rico apenas com meu único cavalo; mas eu não direi a ele exatamente como tudo aconteceu." Então ele mandou que um garoto fosse até o grande Cláudio para lhe emprestar um barril.

"Para que ele quer o barril?" pensou o grande Cláudio; então ele passou pixe no fundo do barril, para que qualquer coisa que fosse colocada nele grudasse e ali permanecesse. E assim aconteceu; pois quando o barril foi devolvido, três novos florins de prata ficaram colados a ele.

"Mas o que significa isto?" disse o grande Cláudio; então ele foi correndo para a casa do pequeno Cláudio, e perguntou, "Onde você conseguiu tanto dinheiro?"

"Oh, foi a pele do meu cavalo, eu a vendi ontem."

"Você foi muito bem pago," disse o grande Cláudio; e ele correu para sua casa, pegou um machadinho, e deu um golpe na cabeça de cada um de seus quatro cavalos, tirou a pele dos quatro, e as levou para a cidade para vender. "Peles, peles, quem quer comprar peles?" gritava ele, a medida que caminhava pelas ruas. Todos os sapateiros e curtidores de pele vieram correndo, e perguntaram a ele por quanto ele estava vendendo.

"Um barril de dinheiro, para cada cavalo," respondeu o grande Cláudio.

"Você está louco?" gritaram todos eles; "você acha que temos dinheiro para gastar em quantidades de um barril?"

"Peles, peles," ele voltou a gritar, "quem quer comprar peles?" mas a todos que perguntavam o preço, a sua resposta era, "um barril de dinheiro."

"Ele está nos fazendo de tolos," disseram todos eles; então os sapateiros pegaram suas cintas, e os curtidores seus aventais de couro, e começaram a surrar o pequeno Cláudio.

"Peles, peles!" gritavam eles, zombando dele; "sim, deixaremos uma marca na pele para você, até que ela fique toda marcada."

"Vamos expulsá-lo da cidade," disseram eles. E o grande Cláudio foi obrigado a correr o mais rápido que podia, nunca antes em sua vida ele havia apanhado tanto.

"Ah," disse ele, assim que chegou em casa; "O pequeno Cláudio vai me pagar por isto; eu vou matá-lo de tanto bater."

Durante esse período, a avozinha do pequeno Cláudio tinha morrido. Ela tinha sido nervosa, cruel e muito maldosa com ele; mas ele lamentava isso, e pegou a velhinha morta e a colocou em sua cama quentinha para ver se ele conseguia trazê-la à vida novamente. Alí ele decidiu que ela devia ficar a noite toda, enquanto ele ficou sentado numa cadeira num canto do quarto como frequentemente ele fazia isso antes. Durante a noite, enquanto ele ficou sentado ali, a porta se abriu, e o grande Cláudio entrou com um machadinho. Ele sabia bem onde a cama do pequeno Cláudio ficava; então ele foi em direção a ela, e golpeou a avozinha na cabeça, pensando que pudesse ser o pequeno Cláudio.

"Toma," exclamou ele, "agora você nao vai mais me fazer de tolo novamente;" e então ele foi para casa.

"Esse cara é muito maldoso," pensou o pequeno Cláudio; "ele pretendia me matar. Ainda bem que a minha avó já estava morta, ou ele a teria matado." Então ele vestiu a sua avó com a sua melhor roupa, emprestou um cavalo do seu vizinho, e o atrelou a uma carroça.

Depois ele colocou a velhinha no banco de trás, de modo que ela não caísse enquanto ele dirigia, e seguiu pela floresta. Ao amanhecer eles chegaram a uma grande estalagem, onde o pequeno Cláudio parou para comer alguma coisa. O estalajadeiro era um homem rico, e muito bom; mas tão impetuoso com se tivesse sido feito de pimenta e rapé.

"Bom Dia," disse ele ao pequeno Cláudio; "você chegou cedo hoje."

"Sim," disse o pequeno Cláudio; "Eu estou indo à cidade com a minha avó; ela está sentada atrás na carroça, mas ela não pode vir até aqui. Será que você poderia levar um copo de mel para ela? mas você deve falar bem alto, porque ela não consegue ouvir."

"Sim, certamente que posso," respondeu o estalajadeiro; e, derramando mel dentro de um copo, ele o levou para a avó que estava morta, mas que estava sentada verticalmente na carroça. "Aqui está um copo de mel que o seu neto me pediu para trazer," disse o estalajadeiro. A velhinha morta não respondia nada, mas continuava sentada. "Você não ouviu o que eu disse?" gritou o estalajadeiro o mais alto que pode; "aqui está o copo de mel do seu neto."

Várias vezes ele gritava, mas como ela não se mexia ele ficou furioso, e jogou o copo de mel na cara dela; o copo ficou grudado no nariz dela, e ela caiu de costas para fora da charrete, porque ela estava somente sentada lá, não estava amarrada.

"Hei!" gritou o pequeno Cláudio, saindo impetuosamente pela porta, e agarrando o estalajadeiro pela garganta; "você matou a minha avó; veja, ela está com um buraco enorme na testa."

"Oh, que azar," disse o estalajadeiro, retorcendo as mãos. "Tudo isso acontece por causa do meu péssimo temperamento. Querido pequeno Cláudio, eu lhe darei um barril de dinheiro; e sepultarei a sua avó como se ela fosse minha avó; somente não conte nada para ninguém, ou eles vão me cortar a cabeça, e isso seria muito desagradável."

E assim aconteceu que o pequeno Cláudio recebeu outro barril de dinheiro, e o estalajadeiro sepultou a sua querida avó como se fosse a dele próprio. Quando o pequeno Cláudio chegou em casa novamente, ele imediatamente enviou um garoto até a casa do grande Cláudio, pedindo-lhe que lhe emprestasse uma barril como medida. "Mas porquê será isso?" pensou o grande Cláudio; "será que eu não o matei? Preciso ir lá para ver com meus próprios olhos." Então ele foi até o pequeno Cláudio, e levou a medida de um barril consigo. "Como você conseguiu todo esse dinheiro?" perguntou o grande Cláudio, arregalando bem os seus olhos diante do tesouro do seu amigo.

"Você matou a vovó e não eu," disse o pequeno Cláudio; "então eu a vendi por um barril de dinheiro."

"Esse me parece ser um bom preço," disse o grande Cláudio. Então ele foi para casa, pegou uma machadinha, e matou a própria avó com um só golpe. Depois ele a colocou numa charrete, e partiu rumo à cidade até o boticário, e lhe perguntou se ele queria comprar um defunto.

"De quem é o corpo, e onde você o conseguiu?" perguntou o boticário.

"É a minha avó," respondeu ele; "Eu a matei com um único golpe, para que eu pudesse conseguir um barril de dinheiro com o corpo dela."

"Deus me livre!" disse o boticário, "você deve estar louco. Não me diga essas coisas, ou você perdeu todo o juízo." E então o boticário falou a ele seriamente sobre o mal que ele tinha cometido, e lhe disse que um homem tão mau assim certamente merecia ser punido. O grande Cláudio ficou tão assustado que imediatamente correu para fora da sala de cirurgia, pulou rapidamente para dentro de sua carroça, deu uma chibatata em seus cavalos, e sem perda de tempo correu desesperado para casa. O boticário e todas as pessoas acharam que ele tinha ficado louco, e deixavam que ele dirigisse a charrete para onde ele quisesse.

"Você me pagará por isto," disse o grande Cláudio, assim que ele colocou o pé na estrada, "ah, e como pagará, pequeno Cláudio." Então assim que ele chegou em casa ele pegou o maior saco que ele conseguiu encontrar e partiu em direção à casa do pequeno Cláudio. "Você me pregou uma nova peça," disse ele. "Primeiro, eu matei todos os meus cavalos, e depois a minha avó, e tudo por sua culpa; mas você não vai mais me fazer de bobo." Então ele colocou a mão em volta do corpo do pequeno Cláudio, e o empurrou para dentro do saco, e depois ele colocou o saco nos ombros, dizendo, "Agora eu vou afogá-lo no rio.

Ele tinha um longo caminho a percorrer antes de chegar ao rio, e o pequeno Cláudio não era um peso muito leve de se carregar. A estrada passava perto da igreja, e quando eles passavam em frente ele pode ouvir o órgão tocando e as pessoas cantando com muita alegria. O grande Cláudio colocou o saco perto da porta da igreja, e achou que ele também poderia entrar e ouvir um salmo antes de continuar a caminhada. O pequeno Cláudio com certeza não conseguiria sair do saco, e todas as pessoas estavam dentro da igreja; então ele entrou também.

"Oh que azar, oh que azar," suspirava o pequeno Cláudio dentro do saco, enquanto ele virava e se revirava por todos os lados; mas ele achava que ele não conseguiria soltar o cordão com o qual o saco havia sido amarrado. Por acaso, um velho criador de gados, de cabelos esbranquiçados, passava por perto, e levava na mão uma vara bastante longa, com a qual ele comandava uma grande manada de vacas e bois que iam na frente. Eles tropeçaram no saco onde o pequeno Cláudio estava, virando-o de lado. "Oh que azar," suspirou o pequeno Cláudio, "Eu sou muito jovem, e logo estarei indo para o céu."

"E eu, meu pobre amigo," disse o charreteiro, "E eu, sendo tão velho, jamais chegarei lá."

"Abra o saco," gritou o pequeno Cláudio; "entre dentro dele no meu lugar, e logo você estará lá."

"Com a maior alegria," respondeu o charreteiro, abrindo o saco, de onde o pequeno Cláudio saltou para fora o mais rápido possível. "Você vai cuidar do meu gado?" disse o velhinho, enquanto entrava dentro do saco.

"Sim," disse o pequeno Cláudio, e ele amarrou o saco, e depois foi embora com todas as vacas e os bois.

Quando o grande Cláudio saiu da igreja, ele pegou o saco, e o colocou de volta em seus ombros. Ele parecia ter ficado mais leve, pois o velho charreteiro não tinha a metade do peso do pequeno Cláudio.

"Como ele está parecendo leve agora," disse ele. "Ah, é porque eu fui a igreja!" Então ele caminhou até o rio, o qual era profundo e largo, e jogou o saco contendo o velho charreteiro dentro da água, acreditando que fosse o pequeno Cláudio. "É aí que você deve ficar!" exclamou ele; "agora você não irá me pregar nenhuma peça mais." Então ele se virou para ir para casa, mas quando ele chegou no lugar onde as duas rodovias se cruzavam, lá estava o pequeno Cláudio comandando o gado. "Como pode ser isto?" disse o grande Cláudio. "Eu não acabei de matar você afogado agora mesmo?"

"Sim," disse o pequeno Cláudio; "você me jogou dentro do rio a cerca de meia hora atrás."

"Mas onde você conseguiu todos esses belos animais?" perguntou o grande Cláudio.

"Estes animas são gados marinhos," respondeu o pequeno Cláudio. "Eu vou lhe contar a história toda, e lhe agradecer por ter-me afogado; eu me tornei superior a você agora, porque fiquei muito rico. Eu estava assustado, para dizer a verdade, quando eu estava amarrado dentro do saco, e o vento soprou em meus ouvidos quando você me atirou da ponte para dentro do rio, e eu afundei até o fundo do rio imediatamente; mas eu não me machuquei, porque eu caí sobre uma grama linda e macia que nasce lá embaixo; e de repente, o saco se abriu, e uma linda sereia veio na minha direção. Ela usava vestidos brancos como a neve, e ela tinha uma grinalda de folhas verdes em seus cabelos molhados. Ela me pegou pelas mãos, e disse, 'Então você chegou, pequeno Cláudio, eis aqui alguns gados para você começar. Meia milha depois na estrada, há uma outra manada para você.' Então eu vi quando o rio formou uma grande estrada para as pessoas que vivem no mar. Elas estavam andando e indo de lá para cá, do mar para a terra, até o lugar onde o rio terminava. O leito do rio estava coberto das flores mais lindas e de uma relva fresca e macia. Os peixes me ultrapassavam tão rapidamente como fazem os pássaros do céu. As pessoas eram tão bonitas, e que gados belíssimos estavam pastando nos montes e nos vales!"

"Mas porquê você voltou novamente," disse o grande Cláudio, "se tudo era tão lindo lá em baixo? Eu não teria feito isso?"

"Bem," disse o pequeno Cláudio, "foi uma boa estratégia da minha parte; você ouviu quando eu disse agora mesmo que uma sereia do mar me havia dito para seguir mais meia milha no caminho, e eu encontraria toda uma manada de gado. Falando de estrada, ela queria dizer o rio, pois de modo algum ela consegue viajar pela estrada de terra; mas eu sabia como o rio era sinuoso, e como ele se curva, algumas vezes para a direita e algumas vezes para a esquerda, e esse me pareceu um caminho muito longo, então eu decidi pegar um atalho; e, subindo pelo caminho de terra, e depois voltando pelos campos de volta para o rio, terei economizado meia milha, e terei conseguido todo o meu gado mais rapidamente."

"Que cara de sorte você é!" exclamou o grande Cláudio. "Você acha que eu conseguiria algum gado marinho se eu descesse até o fundo do rio?"

"Sim, eu acho que sim," disse o pequeno Cláudio; "mas eu não vou carregar você até lá dentro de um saco, você é pesado demais. Todavia, se você for lá primeiro, e depois entrar dentro de um saco, eu o jogarei com o maior prazer."

"Obrigado," disse o grande Cláudio; "mas lembre-se, se eu não encontrar nenhum gado marinho lá em baixo e subo aqui novamente e lhe dou uma boa surra."

"Não, agora, não tenha muita certeza disso!" disse o pequeno Cláudio, enquanto eles caminhavam até o rio. Quando eles chegaram perto, os gados, que estavam com muita sede, viram o rio, e desceram para beber.

"Veja como eles estão com pressa," disse o pequeno Cláudio, "eles estão desesperados para descer lá novamente,"

"Venha, me ajude, rápido," disse o grande Cláudio, afoito, "ou você vai apanhar." Então ele entrou dentro de um saco grande, que estava nas costas de um dos bois.

"Coloque uma pedra grande dentro," disse o grande Cláudio, "ou ou não vou afundar."

"Oh, não fique preocupado com isso," respondeu ele; e colocou uma pedra bem grande dentro do saco, e depois o amarrou bem apertado, e deu um empurrão.

"Plump!" Lá foi o grande Cláudio, que imediatamente afundou até o fundo do rio.

"Eu acho que ele não vai encontrar nenhum gado," disse o pequeno Cláudio, e levou toda a sua manada de volta para casa.





Hans Christian Andersen / A Princesa e a Ervilha

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Hans Christian Andersen
A Princesa e a Ervilha
Era uma vez um príncipe que queria casar com uma princesa, mas com uma princesa que fosse verdadeira. Viajou por todo o mundo à procura de uma que o fosse realmente, mas em todas as que encontrou descobriu sempre algo que não lhe agradava. Princesas havia muitas; mas, quanto a considerá-las verdadeiras, não fora capaz de decidir. Havia sempre alguma coisa que não era de uma princesa genuína. Regressou à pátria, muito triste, pois desejava, deveras, casar com uma princesa verdadeira.
Uma noite estalou uma tremenda tempestade. Relampejava e trovejava, e caía chuva que Deus a dava! Era horrível! Então, alguém bateu à porta da cidade e o velho rei veio abri-la.
Era uma princesa que estava lá fora. Mas, Santo Deus, em que estado a tinham posto a chuva e o mau tempo! A água escorria-lhe dos cabelos, sobre a roupa, entrando pela biqueira e saindo pelo calcanhar. Era uma verdadeira princesa, declarou ela.
– Está bem, em breve o saberemos! – pensou a rainha velha, que, contudo, nada disse. Dirigiu-se ao quarto de hóspedes, tirou a roupa da cama, pôs uma ervilha sobre as tábuas do leito, e depois, colocou vinte colchões por cima da ervilha e sobre estes ainda mais vinte edredões.
Era aí que nessa noite a princesa iria dormir.
No outro dia de manhã perguntaram-lhe se havia dormido bem.
– Oh, terrivelmente mal! – respondeu a princesa. – Quase não preguei olho toda a noite! Sabe Deus o que tinha a cama! Estive deitada sobre qualquer coisa dura que me encheu o corpo de nódoas negras! Foi uma noite horrível!
O rei, a rainha e o próprio príncipe puderam deste modo verificar que se tratava de uma verdadeira princesa. Na verdade, só uma genuína princesa podia ser assim tão sensível. O príncipe tomou-a, então, por esposa, pois tinha agora a certeza de ter encontrado uma princesa de verdade, e a ervilha foi colocada num museu, onde ainda pode ser vista, se ninguém a tirou de lá.

Pois esta é também uma história verdadeira!



John Swannell / Fishlove

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Asli Bayram

John Swannell
Fishlove



Annina Roescheisen
Gina Bramhill


Greta Scacchi


Julie Christie 
Chipo Chung

Felicity Dean


Miriam Margolyes
Emma Thomphson / Greg Wise

Jodhi May

Fiona Shaw

Tamla Kari 

Helene Bonhan-Carter

Helen Bonham-Carter
Lizzy Jagger / Jerry Hall


Lizzy Jagger

Emily Beecham


Judi Dench

Lili Loveless
Lili Loveless

Kathy Lette
Mary McCoy


Dakota Blue Richards



Marlene Dumas / Gallery

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Marlene Dumas

GALLERIA


The Painter, 1994


Missing Picasso, 2013


Helena’s Dream, 2008















Amy - Blue, 2011


Marlene Dumas, Black Drawings, particolare, 1991-1992

Marlene Dumas, James Baldwin, dalla serie “Great Men”, 2014

Marlene Dumas, Alan Turing, dalla serie “Great Men”, 2014



Marlene Dumas_ The First People (I-IV), particolare, 1990
Marlene Dumas
The First People
1990



Broken White, 2006

Marlene Dumas, The Image as Burden, 1993

Nuclear Family, 2013
The Teacher (Sub A), 1987


Mulheres / Karlie Kloss


Feyisa Lilesa / Medalhista etíope que criticou seu país se recusa a deixar o Brasil

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Feyisa Lilesa



Medalhista etíope que criticou seu país se recusa a deixar o Brasil

Feyisa Lilesa fez gesto de protesto contra a opressão de seu grupo étnico ao ganhar a medalha de prata





TOM C. AVENDAÑO

São Paulo 23 AGO 2016 - 13:09 COT


No domingo, o atleta Feyisa Lilesa ganhou a medalha de prata para um país, a Etiópia, ao qual agora se recusa a voltar. “Talvez eu fique aqui”, afirmou depois da vitória, referindo-se ao Brasil, o único país para o qual tem um visto válido no momento. “Se eu conseguir outro [visto] talvez eu vá para os Estados Unidos”, acrescentou. No fim da maratona, o medalhista fez um gesto — os braços cruzados acima da cabeça —, um claro protesto contra o Governo etíope: o gesto está associado com os oromo, grupo étnico a que pertence, que sofre o acosso das autoridades policiais. Lilesa fez o gesto duas vezes: primeiro poucos metros depois de ter cruzado a linha de chegada e depois durante a coletiva de imprensa.


“A situação dos oromo na Etiópia é muito complicada”, disse o atleta. “Em nove meses mataram mais de mil pessoas em manifestações”. Os oromo representam 25% da população da Etiópia, historicamente um dos países mais pobres do mundo, mas que também está há anos num acelerado processo de industrialização. Isso provocou vários conflitos entre o Governo e os oromo, que ocupam o território que circunda a capital, Adis Abeba, exatamente onde a cidade pretende se expandir.
Etiópia

A possibilidade de que os oromo sejam expropriados foi descartada em janeiro, depois de meses de polêmicas que produziram tensões nas relações entre o grupo e as autoridades e provocaram confrontos que resultaram em centenas de mortes. Várias organizações internacionais denunciaram violações dos direitos humanos no tratamento dispensado aos oromo e salientaram que o país está agora na situação mais instável de toda a década. Falando sobre voltar a por os pés em sua terra, Lilesa especulou: “Eles vão me matar”.
O gesto de Lilesa foi um sucesso de visibilidade nas redes sociais. Umcrowdfunding coletou mais de 35.000 euros (cerca de 127.000 reais) para ajudá-lo a encontrar um novo lar. Ele, por sua vez, teme que sua mulher e seus dois filhos já tenham sido presos.
Etiópia

Consultado pelo EL PAÍS, o Ministério das Relações Exteriores brasileiro informou que o atleta não pediu asilo político. Segundo as autoridades brasileiras, esse instrumento costuma ser usado quando o solicitante está fora do Brasil, considera-se perseguido político e quer se asilar aqui. Não é o caso do atleta, e restaria a ele o pedido de refúgio.
Segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), que é vinculado ao Ministério da Justiça, todos os pedidos de refúgio são sigilosos — o que não impede que o próprio solicitante divulgue que tenha feito um pedido.
Colaborou Afonso Benites, de Brasília. 



O lugar mais cruel da Terra

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Em algumas ocasiões, no Dallol, o sulfeto entra em combustão e produz uma chama azul
visível à noite. 

O lugar mais cruel da Terra

JUAN MANUEL GARCÍA RUIZ
23 AGO 2016 - 08:34 COT



Na superfície do continente africano, a geologia desenha um enorme Y. Isso porque a crosta oceânica emerge à superfície abrindo falhas titânicas que se alargam a velocidades imperceptíveis e que, quando alagadas, se transformam em mares. Duas dessas falhas começaram a se formar há 30 milhões de anos e hoje são o mar Vermelho e o golfo de Áden. A terceira, o pé do Y, começou um pouco antes, mas talvez não siga adiante. Mesmo assim, já deixou uma imensa marca que sobe desde a Tanzânia através do Quênia e da Etiópia. É o chamado Vale do Rift. No ponto de união dessas três falhas se encontra um deserto de sal, a chamada depressão de Danakil, uma área de mais de 100 quilômetros quadrados que, à primeira vista, parece um interminável tapete de sal, mas que esconde fascinantes fenômenos minerais e – quem sabe – também as respostas a perguntas cruciais sobre a natureza da vida.
Na realidade, o Danakil não está coberto por um tapete, mas por um manto de sal de dois quilômetros de espessura depositado durante as sucessivas ocasiões em que o mar Vermelho invadiu essa depressão nos últimos 200.000 anos. Sob essa camada salina existe um magma quente que tenta alcançar a superfície. A jazida de sal, elástica e impermeável, resiste às investidas magmáticas, mas acabou por se romper, deixando sair os líquidos, vapores e gases presos em seu interior. A colina criada pelo impulso do magma e moldada pela mineralização é conhecida como Dallol, um lugar que os afar, os habitantes da região, acreditam ser o lar de um espírito maligno.



A subida ao Dallol é feita por uma encosta cor de chocolate. Ao amanhecer, a temperatura já supera os 30 graus. A paisagem é árida. Não há rastro de vida. O ambiente que se respira é inquietante, pelo aroma de enxofre e pela presença dos soldados etíopes que nos escoltam nesta insegura fronteira com a Eritreia.
O Dallol é um campo hidrotermal sem igual. Por todo lado há fontes termais de onde jorra água fervente. Essa água é na verdade uma salmoura supersaturada. Quando brota, todo esse sal excedente se cristaliza formando pilares que inicialmente são de um branco brilhante e puro. A acidez das águas é brutal, quase 500 vezes maior que a do limão. Depois do sal, quando a temperatura da água baixa algumas dezenas de graus, o enxofre se condensa pintando de amarelo fluorescente os pilares inativos. As águas ácidas empoçam graças a represas construídas pela cristalização do próprio sal. O ferro, em contato com o oxigênio da atmosfera, oxida-se reduzindo o pH até o valor mais baixo já encontrado em meio natural, quase 10.000 vezes mais ácido que o limão. As sucessivas mineralizações causadas pela oxidação tingem as águas de cores vibrantes, do verde lima ao verde jade, do laranja ao vermelho, os ocres e chocolates. Você anda sobre uma crosta de sal que sabe que é oca e quebradiça. Percebe que debaixo dos pés há algo que ameaça sair à superfície. O borbulhar intimidador que se ouve e se sente sob o chão ardente por onde escapam gases e vapores faz medir cada passo. Esse vapor de água salgada constrói estruturas de fina crosta que parecem ovos de sal. Quando as fontes termais brotam sob a água empoçada, a salmoura se cristaliza formando uma tubulação pela qual chega até a superfície. Ali precipita uma crosta circular em volta do escoadouro criando belas estruturas em forma de cogumelo que parecem nenúfares flutuando sobre águas multicoloridas.
Formações hidrotermais no topo do Dallol, uma mistura de água quente, magma e minerais. O ar cheira a enxofre e, ao amanhecer, a temperatura ultrapassa os 30 graus. 

Se a tudo isso quiserem chamar de arte, ressaltemos que se trata de arte efêmera. Tudo é fugaz no Dallol, como cabe à extraordinária geodinâmica da região. Tudo é cambiante. As áreas que ontem estavam tranquilas hoje apresentam uma atividade inquietante. As fumarolas que ontem fumegavam a oeste hoje o fazem a leste. As flores de sal que reluziam brancas hoje estão amarelas e, depois de amanhã, vermelhas. E desaparecerão para germinar em outros lugares. A poucos quilômetros daqui apareceu um incipiente campo de fumarolas e fontes termais. Foi ao lado de uma lagoa chamada “negra” cheia de uma solução saturada de sal de magnésio. Levamos toda uma tarde para colher amostras da lagoa, porque cair nela seria morte certa. A água está a 70 graus centígrados e sua concentração é tão alta que tem uma consistência de gel, do qual deve ser impossível sair. Alguns quilômetros a sudeste formou-se outra lagoa, chamada “amarela”, mortalmente bela, decorada com nenúfares de sal e cercada de cadáveres de aves iludidas pelo demônio do Dallol que exalam um odor repugnante.
Os militares que nos escoltam receberam a ordem de abandonar acampamento. A fronteira está cheia de bandidos à espreita e o cânion de sal que nos fornece a irrisória, mas única sombra existente nos arredores é um lugar difícil de defender pelos jovens soldados que nos guardam. Descemos às pressas do Dallol para recolher os laboratórios e nossos pertences. Um caminhão militar transfere o acampamento a um lugar aberto, com visibilidade de 360 graus, de onde vemos até as tranquilizadoras luzes do povoado de Ahmed Ela. Aqui, toda manhã despertamos contemplando a passagem das caravanas de camelos que os cristãos tigray conduzem para o salar, onde os afar – muçulmanos – cortam os blocos de sal que carregarão de volta até Berhale. Cada manhã é idêntica para eles há séculos. É sua fonte de riqueza. Um trabalho duríssimo, anacrônico, que realizam com ferramentas ancestrais sem o mínimo amparo do sol e do sal. Um despropósito que hoje só se justifica pela beleza e pela natureza épica. Vendo-os passar você tem a certeza de que o mineral não é a única coisa instável no Dallol. O passado dessa gente dura, elegante e orgulhosa dependeu de sua habilidade de extrair a riqueza desse sal que carregam, mas seu futuro está sujeito a sua capacidade de controlar a extração de outros sais, de outros metais que puseram este deserto na mira de grandes mineradoras.
O professor García-Ruiz, autor desta reportagem, coleta água a mais de 100 graus em uma chaminé hidrotermal. 

Além da beleza, que por si só justifica o estudo e a conservação desse museu mineral, o Dallol é importante por duas razões. A primeira é saber até que ponto esse inferno está deserto ou se, pelo contrário, foi colonizado por uma vida microbiana que a cada dia se revela mais universal. Buscar sinais dessa existência em condições extremas de acidez, salinidade e temperatura é a principal tarefa de Purificación López-García e de sua equipe de microbiólogos do Centro Nacional para a Pesquisa Científica (CNRS), da França, e da Universidade de Paris Sul. Determinar os limites físico-químicos da vida na Terra nos permitiria ampliar o tipo de ambientes onde se poderia procurar vida em outros planetas e nos ajudaria a conhecer melhor os primeiros estágios da vida na Terra, quando sua superfície deve ter sido menos hospitaleira que agora. Por outro lado, suspeita-se que nesses ambientes químicos extremos existam estruturas minerais autoorganizadas que podem ter desempenhado um papel crucial na Terra primitiva, quando a vida ainda não havia aparecido sobre um planeta que estava brincando de criar as moléculas orgânicas que a tornariam possível. Essa busca, dos lagos extremamente alcalinos nas terras dos massais do Quênia até estes lagos ultra-ácidos do território afar, é a tarefa de minha equipe de cristalógrafos e geólogos do Conselho Superior de Pesquisações Científicas (CSIC). Trabalhamos em conjunto, entre Paris e Granada, ao amparo dos projetos do European Research Council, com a esperança de que esta terra de Lucy, a australopiteco que iluminou a origem do homem, também revele segredos sobre a origem da vida.


Woody Allen / “Era um menino doce e, de repente, algo me tornou negativo”

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Woody Allen
Poster de T.A.


Woody Allen

“Era um menino doce e, de repente, algo me tornou negativo”

O diretor estreia nesta quinta-feira seu novo filme, onde conecta a sua fascinação com o passado e seu amor pelo cinema



Madri 25 AGO 2016 - 10:23 COT
Woody Allen tinha cinco anos quando começou a pensar na morte. “Minha mãe não sabe o que aconteceu comigo”, diz o diretor nova-iorquino movendo a cabeça, sentado na borda de uma cadeira no Hotel Martinez, em Cannes. “Era um menino muito doce nos primeiros cinco anos da minha vida e, de repente, aconteceu algo que me tornou negativo. Acredito que, com a idade, as pessoas são conscientes da morte e percebem que tudo vai acabar”.

Woody Allen, durante a rodagem de 'Café Society',
o 18 de setembro de 2015, em Nova York.
JOSIAH KAMAU BUZZFOTO VIA GETTY IMAGES
Esse pessimismo o acompanhou por toda a vida, mas preferiu rir dele, na realidade e em seus filmes, que para ele são um pouco a mesma coisa. Agora, aos 80 anos, é um pouco mais feliz na realidade e seus filmes transmitem isso, talvez seja por essa razão que Café Society, seu 47º filme como diretor, que estreia nesta quinta-feira no Brasil, seja um dos mais românticos.
“Tive uma vida melhor desde que conheci minha mulher”, reconhece. “Isso foi bom para mim e agradável, mas não fez de mim um otimista. Porque você tem sua mulher, seus filhos e, de repente, não estão mais aqui: e se acontecer algo com ela? E se acontecer algo às crianças? A ansiedade toma conta de mim. Vivi nos limites da feiura da existência humana. Mas tive sorte nos últimos anos, não sofri tanto. Tenho 80 e sofri 60 anos de minha vida”, admite e ri.
Esses debates existenciais e esse medo atroz da morte ele os passa aos protagonistas de seus filmes faz anos. E Bobby, o improvável galã de Café Society, interpretado por Jesse Eisenberg, não foi poupado. “A vida é uma comédia escrita por um cômico sádico”, diz o personagem, apesar de que a vida acaba sorrindo para ele, preso no amor entre duas belas mulheres, uma na Califórnia (Kristen Stewart) e outra em Nova York (Blake Lively), com o mesmo nome de femme fatale, Verônica.


Jesse Eisenberg e Kirsten Stewart, em 'Café Society'  GC IMAGES


“É um filme romântico”, admite. Além disso, ele o escreveu em forma de romance, com um narrador em off (o próprio Allen). “Não é romântico apenas por essas meninas. O personagem de Jesse é muito doce, e aquela época na Califórnia e em Nova York, os anos trinta, também foi muito romântica”, diz ele com uma pitada de nostalgia, sentimento pouco frequente no nova-iorquino.
“É preciso ter cuidado com a nostalgia”, continua. “A nostalgia é uma armadilha. Te pega. Este filme acontece nesse período de tempo. E eu, pessoalmente, sinto nostalgia por essa época. Por que me sinto nostálgico é uma loucura, pois eu não estava lá, mas só de ler sobre ela...”, diz. E de lembrar as histórias que seu pai lhe contava. Histórias da máfia que também estão em Café Society.

Contra os diretores

Naqueles anos trinta teve sucesso aquele que foi seu modelo, Groucho Marx. Allen vê o cinema daquela época com admiração, mas nunca teria se encaixado no sistema de estúdios então existente, que também mostra em Café Societycom o magnata Phil Stern (Steve Carell). “Eram ditatoriais e insensíveis com os diretores. Pegavam o seu trabalho e mudavam. O diretor não editava o filme, não podia dizer nada sobre o roteiro, era escolhido pelos atores. Não era uma época de autores”, explica contrariado. “Eu sempre tive liberdade para fazer o que quisesse. A única coisa que se interpõe entre a grandeza e eu... sou eu”, diz rindo. “Se não posso fazer um bom filme é porque ele não está em mim”.
Quanto à sua primeira série de televisão, Crisis in Six Scenes, ele reconhece que a fez por dinheiro. “Eu faço filmes, nunca assisto televisão. No entanto, continuaram aumentando o preço e não pude recusar porque era muito lucrativo”. Também achava que seria fácil, mas tornou-se seu “maior pesadelo”. Agora ele respira aliviado, um mês antes da estreia na Amazon. “São seis horas e meia de pura comédia ambientada nos anos sessenta, quando pensaram que estouraria uma revolução nos EUA com o Vietnã, os hippies, os Black Panthers”, conta. “Está pronta, fiz o que pude, não queria trabalhar duro, tive que fazê-lo, e só espero que vocês gostem”.
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Adam Rogers / Nova York

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Adam Rogers
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Adam Rogers is a contributing Photographer for By Such and Such, and also creator of soon-to-be published photo essay book: “A Thread of Two Cities.”

A ‘nação Phelps’, à frente de 150 países

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Michael Phelps

A ‘nação Phelps’, à frente de 150 países

Com a Rio 2016, nadador dos EUA conquista mais ouros que Argentina e fica a 7 ouros do Brasil


GUILHERME PADIN
São Paulo 23 AGO 2016 - 17:41 COT

A Olimpíada do Rio de Janeiro foi a última do maior atleta olímpico de todos os tempos. Em cinco participações, Michael Phelps conquistou mais medalhas de ouro que mais de 150 países em toda a história dos Jogos Olímpicos: se despediu do Rio com 23 ouros, apenas 7 a mais do que o Brasil conseguiu em todas suas participações. Considerando todos os esportes e as olimpíadas já disputadas, países como Argentina, México, Portugal, Áustria e Índia chegaram menos vezes do que Phelps ao lugar mais alto do pódio.
Foram 16 anos e cinco olimpíadas para o nadador norte-americano, que chegou ao Brasil com 18 ouros e deixou o país com 23 – Phelps ganhou ainda uma prata. Os números limpos não traduzem a trajetória real do nadador, com altos e baixos, desde o garoto de sete anos que sofria de TDAH (transtorno de déficit de atenção com hiperatividade) até jovem pai que coroou sua reinvenção nos Jogos do Rio.

A natação foi sua primeira porta para se lidar com o transtorno de atenção. O esporte, praticado por suas irmãs mais velhas Whitney e Hillary, foi um alento: conseguia se concentrar no exercício e ainda gastava energia. A primeira oportunidade em uma olimpíada veio em 2000, em Sydney. Aos 15 anos, ele chegou às finais dos 200 m borboleta e garantiu o quinto lugar, resultado expressivo para um atleta tão novo.
Quatro anos e alguns títulos depois, em Atenas, foi sua afirmação como nadador. Se restavam dúvidas sobre seu potencial, Phelps liquidou todas elas na Grécia. Em 2004, foram duas medalhas de bronze e seis de ouro, que o qualificaram como estrela e favorito para os Jogos seguintes, em Pequim. Na China, a expectativa e o favoritismo não assustaram a super-estrela norte-americana. Ele foi além do esperado e garantiu incríveis oito medalhas de ouro, superando o nadador e compatriota Mark Spitz como o atleta que mais subiu ao pódio em uma mesma edição de jogos olímpicos.




PHELPS, A 39ª NAÇÃO MAIS VENCEDORA DA HISTÓRIA DOS JOGOS


1ª: Estados Unidos – 1022 ouros
2ª: União Soviética* – 395 ouros
3ª: Grã-Bretanha – 263 ouros
4ª: China – 227 ouros
5ª: França – 212 ouros
6ª: Itállia – 206 ouros
7ª: Alemanha – 191 ouros
8ª: Hungria – 175 ouros
9ª: Alemanha Oriental* – 153 ouros
10ª: Rússia – 149 ouros
11ª: Austrália – 147 ouros
12ª: Suécia – 145ouros
13ª: Japão – 142 ouros
14ª: Finlândia – 101 ouros
15ª: Coreia do Sul – 90 ouros
16ª: Romênia – 89 ouros
17ª: Holanda – 85 ouros
18ª: Cuba – 77 ouros
19ª: Polônia – 67 ouros
20ª: Canadá – 63 ouros
21ª: Alemanha Ocidental* – 56 ouros
21ª: Noruega – 56 ouros
23ª: Bulgária – 51 ouros
24ª: Tchecoslováquia* – 49 ouros
24ª: Suíça – 49 ouros
26ª: Nova Zelândia – 46 ouros
27ª: Equipe Unificada (pós-União Soviética)* - 45 ouros
27ª: Dinamarca – 45 ouros
29ª: Espanha – 44 ouros
30ª: Bélgica – 40 ouros
31ª: Turquia – 39 ouros
32ª: Ucrânia – 35 ouros
33ª: Grécia – 33 ouros
34ª: Quênia – 31 ouros
35ª: Brasil – 30 ouros
36ª: Equipe Unida da Alemanha* - 28 ouros
37ª: Iugoslávia – 26 ouros
38ª: África do Sul – 25 ouros
39ª: Phelps – 23 ouros
39ª: Jamaica – 23 ouros
41ª: Etiópia – 22 ouros
42ª: Argentina – 21 ouros
* Equipes formadas para os Jogos ou de nações já extintas

No caminho da fama

Acreditava-se que os Jogos de Londres, em 2012, seriam o auge do atleta, mas a fama acabou se mostrando mais um obstáculo para Phelps. Um ano após a fantástica apresentação na China, uma foto do nadador usando um bong (aparelho utilizado para se fumar cannabis e outras ervas) viralizou na Internet. Ele foi suspenso por três meses e perdeu seu maior patrocinador.
Foi o estopim para uma mudança radical no comportamento do atleta. O temperamento difícil somado aos novos hábitos de celebridade resultariam em um desgaste com Bob Bowman, seu treinador desde os 11 anos de idade, considerado pelo nadador como um segundo pai. A relação seguiu ruim até a Olimpíada de 2012, mas, para disputar a competição, os dois mantiveram a crise em segredo. O momento conturbado não impediu Phelps de conquistar mais quatro ouros e duas pratas e chegar à marca de 22 medalhas, 18 de ouro: se tornou o maior medalhista da história dos Jogos Olímpicos, superando Larissa Latynina, ginasta da antiga União Soviética entre 1956 e 1964, com 18.
A consagração não era o suficiente para fazê-lo feliz nadando: o norte-americano decidiu se aposentar após Londres. Ele mesmo conta, porém, que a sensação de alegria na aposentadoria duraria pouco. Em 2013, decidiu retornar às águas e pediu a Bowman para voltar a treiná-lo. Relutante, o antigo técnico aceitou, mas uma nova recaída tornaria tornou praticamente impossível a participação de Phelps em mais uma olimpíada: foi preso em setembro de 2014 pela segunda vez por dirigir alcoolizado. Suspenso por seis meses e fora da equipe norte-americana na Copa do Mundo de Natação de 2015, ele era considerado carta fora do baralho para a Rio 2016.  Na fase classificatória, ele mostraria que ainda podia surpreender: venceu os 200m borboleta, os 200m medley e os 100m borboleta na seletiva para os Jogos do Rio, e, assim, garantiu vaga para a quinta e - e ele diz última - Olimpíada.
Ser porta-bandeira dos Estados Unidos na cerimônia de abertura já seria homenagem suficiente para o maior nadador de todos os tempos, mas ele queria mais. Os resultados na Rio 2016 deram a Phelps o fim de carreira de ele sonhava. Individualmente, chegou à 13ª medalha de ouro, o que o levou a quebrar um recorde de 2160 anos, superando Leônidas de Rodes, um dos mais famosos atletas olímpicos da Antiguidade, que havia conseguido 12 ouros no atletismo, até então o recorde de vitórias individuais da história das Olimpíadas.
"Estes Jogos são a cereja que queria colocar no meu bolo", disse Phelps, que que quer tempo agora para seu bebê Boomer, crescer, e ficar com a família -antes do Rio, Phelps também se reaproximou do pai, Fred. O desafio do rei das piscinas é encontrar um lugar confortável para sua vida fora dela. Já falou em lutar por boas condições para nadadores pelo mundo e até ser professor de natação ou salva-vidas. "Quero que as crianças estejam mais seguras na água. Se posso ensiná-los a nadar, será um grande êxito."

A América Latina se despede de Juan Gabriel, o ‘Divo de Juárez’

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Juan Gabriel


A América Latina se despede de Juan Gabriel, o ‘Divo de Juárez’

O cantor mexicano morreu de um infarto em Santa Mônica, Califórnia


SONIA CORONA
México 28 AGO 2016 - 21:23 COT


México perdeu seu Divo de Juárez e o compositor da história sentimental do país nas últimas quatro décadas. Alberto Aguilera Valadez, o cantor e compositor mexicano conhecido como Juan Gabriel, faleceu às 11h30 de domingo depois de sofrer um infarte em sua casa em Santa Mônica, Califórnia. O cantor, de 66 anos, tinha viajado para os Estados Unidos para fazer uma série de concertos de sua turnê MeXXIco es todo em Los Angeles.
Juan Gabriel foi um símbolo da cultura popular mexicana com um dos repertórios mais abundantes de composições em espanhol. Sua origem humilde e sua difícil ascensão à fama inspirou suas canções mais conhecidas. Aguilera Valadez nasceu em Parácuaro (Estado de Michoacán) em 7 de janeiro de 1950. O mais novo de 10 filhos viveu seus primeiros anos na pobreza e depois da morte de seu pai migrou com a mãe para Ciudad Juárez (Estado de Chihuahua). Ali, entrou em uma instituição de cuidados para menores, de onde fugiu aos 13 anos. A partir de então começou um périplo pelas ruas: vendeu produtos de madeira e cantou em bares na fronteira com os Estados Unidos.
Juan Gabriel e Rocío Durcal

Sua vida poderia ter sido destinada ao abandono nas ruas, mas Alberto Aguilera Valadez começou sua carreira em centros noturnos. Aos 21 anos, conseguiu seu primeiro contrato com a gravadora RCA e decolou com uma discografia meteórica que lhe permitiu vender mais de 100 milhões de álbuns em todo o mundo. Algumas de suas canções foram traduzidas para o português, japonês e italiano.
Em 1990, Juanga se tornou o primeiro cantor de música popular a se apresentar no Palácio de Belas Artes, a casa de espetáculos mais importante do México, ao lado da Orquestra Sinfônica Nacional. Entre seu repertório estão músicas comoHasta que te conocíAsí fueQueridaEl Noa Noa e Se me olvidó otra vez. Suas canções passam por vários gêneros musicais que vão desde o ranchero até os boleros, o pop, a salsa e o mariachi. Seu maior sucesso foi Amor Eterno, umaranchera composta depois da morte de sua mãe em 1974 e gravada em 1990 em um dueto com a cantora espanhola Rocío Durcal.
Juan Gabriel é o compositor mexicano com o maior número de composições musicais registradas —cerca de 1.500 canções. Seus concertos são um carnaval de sons e lembranças: o casal que se apaixona com suas canções e o casal que se separa com elas. No ano passado, apresentou uma série de 16 concertos na Cidade do México para os quais criou espetáculos de mais de duas horas nas quais além de interpretar suas canções mais famosas também dançava.

Sua vida pessoal sempre foi objeto de polêmica nas revistas de fofocas. O cantor teve quatro filhos com uma de suas amantes, mas nunca foram casados. Foi um dos primeiros artistas mexicanos a admitir publicamente sua homossexualidade. Diante da pergunta do jornalista Fernando del Rincón sobre sua orientação sexual em 2002, Juan Gabriel colocou um fim a esta especulação respondendo: “Dizem que o que se vê não se pergunta, filho”. As acusações de abuso sexual contra o cantor também encheram as páginas dos jornais nos anos seguintes, sem que nenhuma delas fosse adiante nos tribunais.
O cantor fez seu último concerto na sexta-feira passada, dia 26, no Fórum de Inglewood em Los Angeles. Na apresentação de mais de duas horas, parecia emocionado e prestou uma homenagem a Durcal, com quem cantou uma série de duetos na década de 80, segundo informa o site dos prêmios Billboard. As crônicas de sua última apresentação falam de um Divo de Juárez “feliz, emocionado, radiante”.
O registro mais fiel de sua vida é a série de televisão Hasta que te conocí, que estreou este ano e na qual o ator colombiano Julián Román interpreta o Divo de Juárez. Román contou em julho a este jornal que o cantor reuniu os produtores em sua casa em Cancún para lhes contar sua vida. Paradoxalmente, o último episódio será veiculado na noite deste domingo, 28 de agosto, na televisão mexicana.

16 vozes para contar o Brasil

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16 vozes para contar o Brasil

Da oralidade ao pop passando pela vanguarda e a crítica social, vozes que retratam um país



CAMILA MORAES
30 JUL 2016 - 09:40 COT

Da oralidade ao pop passando pela vanguarda e a crítica social, a literatura viva do Brasil é tão ampla e diversa como o próprio país. 16 vozes contemporâneas nos dão um mosaico de um país poliédrico.


Adriana Lisboa, uma escritora sem amarras

Romancista, contista e autora infanto-juvenil, Adriana Lisboa (Rio de Janeiro, 1970) segue fluídos caminhos literários. Essa fluidez vem de seu interesse em outras artes, sobretudo a música, sua área de formação, e da visão de que são parcas as fronteiras entre os gêneros literários. Deu largada à carreira de escritora quando decidiu fazer de próprio punho as histórias que lia para o filho. Sua estreia é com Os fios da memória (1999) – um flerte com o romance histórico –, e aquele que a consagrou chama-se Sinfonia em branco– uma premiada história de sofrimento familiar. Depois de períodos na França e no Japão, Adriana vive hoje nos EUA, onde se dedica à literatura e à pesquisa. Dessas andanças vem o olhar estrangeiro, outro traço da fluidez dessa escritora essencial.

A oralidade de Ronaldo Correia de Brito

Romancista e contista, Ronaldo Correia de Brito (Saboeiro, 1951) é a principal voz literária a perpetuar, hoje, as histórias populares do nordeste brasileiro – tão marcadas pela oralidade, assim como sua obra. Médico ao mesmo tempo que é escritor, diz que a medicina o coloca “diante do espetáculo da vida e da morte”, enquanto a literatura permite a todos “preencher as lacunas da história”. É um autor prolífico, ainda assim começa a publicar tarde, inseguro de ser um escritor a mais. Estreia com uma elogiada coletânea de contos,Faca (2003), que abre caminho para sua consagração com Galileia(2008), romance que se esmera em retratar um Brasil dos senhores de terra. Ainda que seus protagonistas sejam homens, o livro opera na órbita das mulheres – que, para Correia de Brito, são a alma do cotidiano que inspira sua obra.

O canibalismo artístico de Alberto Mussa

Alberto Mussa (Rio de Janeiro, 1961) escapou de se tornar matemático para virar um dos nomes mais valiosos da literatura brasileira, com uma obra sem paralelo no país. Romancista, contista, tradutor de tendências canibais, Mussa, é um autor que dá voz aos mais desfavorecidos do caldeirão cultural brasileiro. Seus personagens têm raízes indígenas, africanas e árabes. Estreia na literatura com Elegbara (1997), um livro de contos inspirado pela mitologia dos nagôs, etnia africana responsável por trazer o candomblé ao Brasil. Sua entrega literária mais recente é A primeira história do mundo (2015), o terceiro título de uma pentalogia de livros policiais. Nela, Mussa conta a história do Rio de crimes cometidos em diferentes épocas, partindo de um caso de 1567, no qual um serralheiro foi encontrado morto com sete flechas.

Ana Martins Marques, poesia que acolhe

No borbulhante mar nacional de novos poetas, a voz acolhedora de Ana Martins Marques (Belo Horizonte, 1977) vai contra todo projeto poético literalista, com excessos de pompa. Assim, Marques contribui com a cumplicidade poeta-leitor, tão desejada na poesia. Seu despojamento se vê no registro informal da língua, nos temas cotidianos e na modéstia daquele que não sabe ser poeta – mas que escreve, na verdade, respaldado por uma paixão e uma experiência da linguagem profundas, como é o caso dessa escritora mineira. O livro das semelhanças é a terceira e mais recente coletânea de poemas da autora, vinda dos premiados A vida submarina e Da arte das armadilhas. É uma das vozes mais originais da poesia brasileira atual.

O humor certeiro de Antonio Prata

Com 10 livros publicados, a maioria de contos e crônicas, Antonio Prata (São Paulo, 1977), fala do cotidiano à moda brasileira, com doses certeiras de crítica e humor. Passou à luz dos holofotes comMeio intelectual, meio de esquerda, premiado livro de 2010 em que se define com as palavras do título enquanto usa pontos de partida triviais que inspiram textos saborosos. Em 2012, foi um dos vinte autores selecionados para a edição Os melhores jovens escritores brasileiros pela Granta. Devoto da crônica como foram gigantes brasileiros do porte de Rubem Braga e Nelson Rodrigues, escreve na imprensa e é ativo roteirista de TV. Em seu livro mais recente, Nu de botas, ele recria a história de sua infância e retrata os pais, ambos escritores.

Um quê de tragédia em Beatriz Bracher

Antes de se tornar uma respeitada romancista e contista eminentemente política, Beatriz Bracher (São Paulo, 1961) debutou no meio literário fundando uma revista e trabalhando com editora até 2000. Dois anos depois, ela decide passar ao outro lado do balcão e lança seu primeiro livro, o romance Azul e dura. Os contos, que Bracher revela serem sua paixão literária, vêm em 2009, com o belo Meu amor. Ao mesmo tempo, estreia como roteirista de cinema. Sua obra é marcada por questões éticas, implicações políticas, preocupação estética e experimentação formal – e pela violência. “Já me perguntaram”, conta a autora, “por que escrevo coisas tão tristes”. “Acho que a literatura precisa de algo trágico", foi a resposta. Anatomia do paraíso, de 2015, é seu livro mais recente.

Chacal, poesia rock ‘n roll

Visto ad eternum como “poeta marginal”, Chacal rejeita os rótulos que transformem seus escritos (poemas, crônicas e letras de música) em “objeto de museu”. O que ele – Ricardo de Carvalho Duarte (Rio, 1951) – assume é uma poesia rock ‘n roll, produzida sempre na adversidade e para extrapolar o papel. Tem razão. Seu primeiro livro éMuito prazer, Ricardo, lançado em 1971 numa edição mínima mimeografada. Nesses moldes seguiu, organizando recitais de poesia com música e dança. Provocador, é o poeta dos jogos de palavra e do desejo de se aproximar aos leitores, aos quais avisa: “Eu não queria ser Drummond, Bandeira. Queria ser Mick Jagger, Bob Dylan, Caetano, Gil, Chico". Acaba de lançar uma coletânea de poemas, Tudo (e mais um pouco) - Poesia reunida.

A “escrevivência” Conceição Evaristo

Conceição Evaristo (Belo Horizonte, 1946), romancista, contista e poeta, tem uma obra marcada pela “condição de mulher negra”. Em meio à miséria da infância em uma favela ao lado de um bairro nobre de Belo Horizonte, a ficção foi indispensável à sobrevivência. Sua literatura – que Conceição define como “escrevivência” – vem depois de trabalhar como empregada doméstica até 1971, quando conclui os estudos básicos, e de se mudar para o Rio de Janeiro em 1973. Lá, onde vive até hoje, estuda Letras e passa a escrever em revistas sobre afrobrasilidade. A estreia literária vem em 1990, com a série Cadernos Negros, em que passa a encarar sua ancestralidade de maneira crítica, escrevendo sobre a cultura negra de forma lírica e política. Seu livro fundamental é Ponciá Vicêncio (2003), espécie de romance de formação feminino e negro.

Cristóvão Tezza, requinte e solidez

Com uma obra sólida de 14 romances e outros de contos, crônicas e ensaios, Cristóvão Tezza (Lages, 1952) é um dos mais importantes autores da literatura brasileira contemporânea. Dono de um texto requintado, exímio criador de diálogos, escreve intricados enredos na fronteira entre o real e o fictício, com notável capacidade de reinventar o passado. Em 1988, publica seu primeiro livro de ficção,Trapo, que o torna reconhecido nacionalmente. Sucesso inconteste, seu multipremiado O filho eterno(2007) amplia suas fronteiras como escritor ao retratar o nascimento de um filho como momento de ruptura na vida de um casal. Amplamente publicado em outros idiomas, Tezza é autor de uma autobiografia literária, O espírito da prosa.

Rubem Fonseca, um gigante brasileiro

Contista, romancista e roteirista famoso por sua reclusão e aversão a entrevistas, Rubem Fonseca (Juiz de Fora, 1925) ingressou na carreira política e na polícia antes de assumir a carreira de escritor. Radicado no Rio desde a infância, estreia em 1963 com o livro de contos O prisioneiro, e por duas décadas se dedica quase exclusivamente a esse gênero – que deve a ele, no Brasil, sua grande transformação na segunda metade do século XX. Feliz ano novo(1975) é seu livro de contos mais celebrado. Em 1983, lança o romance A grande arte, que lhe abre caminho para a fama de gigante da literatura brasileira. Na última década, a obra deste best sellerpassa por uma fase de reconhecimento no exterior.

Lucrecia Zappi, com o pé na estrada

Lucrecia Zappi (Buenos Aires, 1972), uma escritora-viajante, mudou-se com a família aos quatro anos para São Paulo e passou parte da adolescência no México e outra, já adulta, na Holanda. Hoje está em Nova York, de onde escreve livros e crônicas publicadas na imprensa e faz traduções literárias. Em Onça preta (2013), seu primeiro romance, situado no sertão do Nordeste brasileiro, lança-se de encontro ao outro de maneira observadora – como a autora está acostumada a fazer na vida real. Sua personagem é uma estudante paulistana que sai em busca do pai, apostando na estrada e na aridez da paisagem para esclarecer as dúvidas sobre sua existência. Tem um novo romance, Acre, que virá em 2017. É autora também de um livro de gastronomia, Mil folhas (2009), que investiga o açúcar na mesa de diversas culturas.

Daniel Galera fala a língua do pop

Romancista, contista e tradutor, Daniel Galera (São Paulo, 1979) é um escritor robusto que fala a língua do pop. Sua carreira literária coincide com o início da boom da Internet no Brasil, o que o encaminha para a vanguarda das relações entre a literatura e a rede. Seu universo narrativo abarca adolescentes e jovens adultos contemporâneos, vivendo suas relações e experimentando violência no contexto da cidade – sobretudo Porto Alegre, para onde se mudou com os pais ainda pequeno. Debuta com a coletânea de contos Dentes guardados, publicada através de uma editora independente fundada com um amigo em 2001. Com Mãos de cavalo(2005), romance de verve coming to age, traduzido em vários idiomas, dá um grande salto literário, facilmente reconhecível em sua última entrega, Barba ensopada de sangue(2012), em que demonstra um senso de ritmo impecável. Seus livros e contos foram adaptados para cinema, teatro e histórias em quadrinhos.

Maria Valéria Rezende, amiga de García Márquez e Fidel

Maria Valéria Rezende (Santos, 1942) fez-se freira muito jovem e, em décadas de serviço, sempre se dedicou à educação popular. Foi convidada a morar na Nicarágua no fim da década de 1970 para cuidar da alfabetização de agricultores. Graças a isso, Fidel Castro contratou-a para ensinar aos trabalhadores dos canaviais cubanos. Conviveu muito não só com o comandante, mas com o escritor Gabriel García Márquez, assíduo na ilha. O livro Vasto mundo é sua estreia na vida literária, que desbravou, mais que tudo, escrevendo livros infanto-juvenis. A fama repentina e inesperada veio com o premiado romance Quarenta dias, lançado após o sucesso de sua primeira incursão no gênero, O voo da guará vermelha. Ambos têm em comum a escrita inventiva e um patente conhecimento da realidade que abordam – o mundo das pessoas comuns.

O romance social, por Luiz Ruffato

Grande representante do romance social no panorama atual da literatura brasileira, Luiz Ruffato (Cataguases, 1961) orienta sua obra com uma premissa claramente política. Seu foco é a classe trabalhadora, para a qual olha sem paternalismos. O engajamento literário do autor encontra raízes em sua própria história: Ruffato é filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira e teve diferentes ocupações, entre elas a de operário da indústria têxtil, antes de se dedicar ao jornalismo e à ficção. Seu primeiro romance –Eles eram muitos cavalos (2001) – é seu maior sucesso. Tem 70 fragmentos, ligados pelo fato de que suas histórias transcorrem no mesmo dia em São Paulo. Ruffato, colunista do EL PAÍS, escreveu também uma pentalogia sobre operariado nacional e é organizador de antologias de contos, como 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2005).

Todos os louros a Milton Hatoum

O que se diz no Brasil é que, em ano em que Milton Hatoum (Manaus, 1952) lança livro, os demais esquecem os prêmios literários. Considerado um dos grandes escritores vivos do país, é romancista, contista, professor e tradutor. Seu primeiro romance,Relato de um certo oriente, sai (premiado) em 1986, pouco antes de ele passar a publicar, em periódicos do Brasil e da Europa, artigos e ensaios acerca de autores brasileiros e latino-americanos. Seu segundo romance, Dois irmãos, de 2000, é seu mais celebrado. A melhor descrição de sua literatura é: "Vai do meio ambiente ao vazio da alma, fundindo o social e o existencial". Econômico e poético, Hatoum escreve histórias particulares sem descuidar o contexto social e histórico. Sua obra se concentra no norte do Brasil, mirando a integração de imigrantes Oriente Médio e as repercussões da ditadura brasileira na região.

O talento de Estevão Azevedo

Inscrito no melhor da tradição do romantismo brasileiro e do realismo modernista nordestino, Estevão Azevedo (Natal, 1978) é uma das grandes promessas literárias nacionais. Romancista de mão cheia, apesar de jovem, estreou nos contos, com dois livros publicados antes da chegada de Nunca o nome do menino – seu romance de estreia, no qual uma mulher descobre que é personagem de um livro. Para sua segunda entrega de largo fôlego,Tempo de espalhar pedras (2015), Azevedo vai além. O autor, que se formou jornalista e é editor, debruçou-se no universo do garimpo, buscando na literatura sobre o tema as bases de uma história de bases reais. Na contracorrente da produção literária de hoje, muito urbana e cosmopolita, seu premiado livro fala de cobiça, do desejo que não se materializa sem consequências.







Eliane Brum / O Brasil chega à Olimpíada sem cara

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O ex-presidente Lula e o futebolista Pelé comemoram, em 2009, a escolha do Rio como sede da Olimpíada de 2016.

O Brasil chega à Olimpíada sem cara



Entre o discurso de 2009 e a realidade de 2016, há um país em que a conciliação do inconciliável já não é possível nem como construção identitária
ELIANE BRUM
3 AGO 2016 - 09:46 COT
O mais fascinante desta Olimpíada no Rio é a negação de uma ideia de Brasil. É a impossibilidade de apresentar um imaginário coeso sobre o país para fora – e também para dentro. É a total impossibilidade de conciliação. Esta é a potência do momento – confundida às vezes com fracasso, com estagnação ou mesmo com impotência. O Brasil chega à Olimpíada sem que se possa dizer o que o Brasil é.
Para que isso se torne mais claro, é preciso voltar ao ano de 2009, ao momento em que o Brasil foi escolhido para sediar a Olimpíada de 2016. Há vários vídeos sobre o discurso de Lula após o anúncio. Não o discurso oficial, mas o discurso do então presidente feito para as câmeras de TV. Aquele que é espetáculo dentro do espetáculo. Particularmente, prefiro o da Globo (assista aqui), pelo que esta rede de comunicação representa na história recente do país, e pela linguagem que escolhe ao contrapor a fala de Lulacom a reação dos apresentadores e comentaristas. Quando se pensa que essa “conciliação” foi possível apenas sete anos atrás, tudo fica ainda mais interessante.
Sugiro assistir a estes sete minutos, preciosos para compreender aquele e este momento. Mas também transcrevo aqui a fala de Lula, para que se torne mais fácil refletir sobre os tantos sentidos desse discurso, agora que podemos olhar para ele pelo retrovisor. E para que seja possível prestar atenção nos personagens então secundários, congelando a imagem por um momento.
Lula está emocionado. Não acredito que esteja fingindo se emocionar. Ainda que ele fale com a consciência de que está produzindo um documento para a história, consciência que ele sempre mostrou ter ao longo de seus dois mandatos como presidente do país, ele acredita no que diz. Como Lula vê o país e como entende o povo brasileiro é crucial para compreender o Brasil atual, dada a importância do personagem e o papel de protagonista que desempenhou e desempenha. Naquele momento, há uma festa de comemoração nas areias de Copacabana, como se a multidão que ali está tivesse a função de produzir a imagem capaz de comprovar a tese de seu líder.
Lula diz para as câmeras de TV, e ao dizer o líder carismático está num de seus momentos de maior carisma:
– O Rio perdeu muitas coisas. O Rio foi capital, o Rio foi coroa portuguesa, e foi perdendo... Eu acho que essa Olimpíada é um pouco uma retribuição ao povo do Rio de Janeiro que muitas vezes aparece na imprensa, só nas páginas dos jornais... É preciso respeitar porque o povo é bom, o povo é generoso. Acho que o Brasil merece. Aqueles que pensam que o Brasil não tem condições vão se surpreender. Os mesmos que pensavam que nós não tínhamos condições de governar esse país vão se surpreender com a capacidade do país de fazer uma Olimpíada.
Diante da pergunta de por que o Rio ganhou de cidades como Madri, Tóquio e Chicago, que disputavam ser sede da Olimpíada, Lula afirma:
– A gente tava com a alma, com o coração. Ou seja, era o único país que queria de verdade fazer uma Olimpíada. Porque para os outros seria mais uma. Nós tínhamos que provar a competência de fazer uma Olimpíada. Então eu acho que as pessoas veem isso nos olhos da gente. (...) Essa foi a diferença. Esse país precisa ter uma chance. Não é possível que esse país não tenha, no século 21, a chance que não tivemos no século 20.
Sobre onde ele e o país estariam neste futuro apoteótico, Lula diz:
– Eu não vou estar na presidência, mas estarei como cidadão brasileiro, colocando minha alma, o meu coração, pra que a gente faça o que tem de melhor nesse país. Tem de comemorar porque o Brasil saiu do patamar de um país de segunda classe e se tornou um país de primeira classe.







Lula em 2009: “Ao Temer que está aqui”

Lula agradece a Eduardo Paes (PMDB), a quem chama de “esse menino”, então em seu primeiro mandato como prefeito do Rio, e ao “companheiro” Sérgio Cabral (PMDB), na época governador do Rio. Assim como ao ministro dos Esportes Orlando Silva e ao chefe do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman. Uma voz lembra ao presidente: “Michel”. Lula ignora e segue falando. A voz repete na sequência: “Michel Temer”. Lula é obrigado a citar: “Ao Temer que está aqui”. A cabeça do então presidente da Câmara dos Deputados descola-se por um momento das costas de Lula, onde ele havia estrategicamente se posicionado e de onde não arredou pé.
Temer tinha sido reeleito deputado federal em 2006. Com apenas 99.000 votos, sua soma individual era insuficiente para garantir mais um mandato. Ele só entrou devido ao quociente eleitoral, reeleição garantida pelo total de votos dados ao seu partido, o PMDB. Em 2009, conseguiu se tornar presidente da Câmara dos Deputados, com o apoio do governo. Ele seguirá até o final da entrevista colado nas costas de Lula. Toda vez que Lula procura alguém ao redor para agradecer, dá de cara com Temer. Mas não faz mais nenhuma menção a ele. E a câmera volta a fechar no presidente mais popular da história do Brasil pós-ditadura.
Um repórter pergunta sobre a “decantada” beleza do Rio. E Lula responde:
– Eu acho que alma do nosso povo, o olhar do nosso povo, o calor do nosso povo, o gingado do nosso povo, a cor do nosso povo, o sorriso do nosso povo é imbatível. Acho que finalmente o mundo reconheceu: é a hora e a vez do Brasil.
E segue:
– Eu tava com um orgulho imenso – imenso – de estar defendendo o Brasil. Hoje foi um dia sagrado pra mim. Eu confesso a vocês que, se eu morresse agora, já teria valido a pena, sabe, viver. Porque o Rio de Janeiro, o Brasil provou ao mundo que nós conquistamos cidadania absoluta. Absoluta mesmo. Ninguém agora tem mais dúvida da grandeza econômica do Brasil, da grandeza social, da capacidade nossa de apresentar um programa.
Bem ao final, Lula agradece a Henrique Meirelles, então presidente do Banco Central:
– (Quero) agradecer ao Meirelles, que fez uma defesa extraordinária, anunciando inclusive que o Banco Mundial já disse que o Brasil será, em 2016, a quinta economia do mundo.
Fim da Olimpíada de 2009. Agora, a de 2016.







Descobrir quem saiu e quem ficou no tabuleiro do poder é um dos jogos mais interessantes da Olimpíada

Como o tempo desta época é acelerado, 2016 olha para 2009 como um passado remoto. No futuro que chegou, Lula é anunciado como réu(por suposta obstrução da Justiça naOperação Lava Jato) uma semana antes da abertura oficial da Olimpíada. Dilma Rousseff, a sucessora que ele conseguiu eleger por duas vezes está afastada pelo processo de impeachment. E o carrapato colado nas costas de Lula em 2009 é hoje o presidente interino que possivelmente governará o Brasil até 2018. Lula e Dilma anunciaram que não irão à cerimônia tão acalentada. E Temer finalmente ficará por um instante em primeiro plano, ao anunciar a abertura dos jogos.
O Brasil não se tornou a quinta economia do mundo, mas o mesmo Henrique Meirelles é hoje o ministro da Fazenda do Governo provisório, chacoalhando ameaças de aumento de impostos sempre que tem a oportunidade. Descobrir quem saiu e quem ficou, assim como quem mudou de posição (sem de fato mudar de posição), tornou-se um dos jogos mais interessantes da Olimpíada.
A Olimpíada, assim como a Copa do Mundo, foram sonhadas como apoteoses do eterno país do futuro que finalmente havia chegado a um presente glorioso. Não é um acaso que para representar esta inflexão histórica tenham sido escolhidos dois eventos de exibição para o mundo. O discurso de Lula em 2009 é explícito. Ele pega todos os estereótipos associados ao que se chama de povo brasileiro ou “povo do Rio” (o povo bom, o povo generoso, o povo que tem coração, o povo que tem gingado, o povo que tem alma) e os coloca como o diferencial que levou o país a uma vitória em outro campo, o da política e o da economia. O Brasil teria alcançado um lugar entre os grandes ou “a primeira classe” com este povo. Não apesar de, mas por causa de. E com Lula, um homem de fato “do povo”, na liderança, imagens fundidas entre o representante e o representado. O Brasil teria sido escolhido como sede da Olimpíada por causa do “coração” e da “alma”. Do desejo.
Não há nada de banal nessa construção. Ela é muito rica. Se os estereótipos são viciados, e é da natureza do estereótipo ser viciado assim como estar a serviço de ocultamentos, há algo de novo nessa apropriação que Lula faz. Há algo de novo no que ele faz com o velho. O que não impede que continue girando em falso.







Entre 2009 e 2016 aconteceu 2013: o ano em que as ruas anunciaram que o tempo da conciliação acabou

Há que se perceber ainda que a escolha de eventos para o mundo ver é também a escolha de se olhar com a medida do outro. E não qualquer outro, mas um outro que se coloca – e é reconhecido – como “primeiro mundo” ou “primeira classe”. E que a “cidadania absoluta”, neste momento, é igualada a acesso ao consumo. Essa construção também não é banal. E é bem diferente de construir uma linguagem própria a partir das extraordinárias experiências de diversidade dos vários Brasis.
Vale lembrar que Lula é o grande conciliador: um ano depois da escolha do Rio como sede da Olimpíada, ele terminará seu mandato com a maior popularidade da história desde que há institutos de pesquisa para medi-la. Entre as várias razões, está a quimera de reduzir a pobreza sem tocar na renda dos mais ricos, o que só foi possível graças à exportação de commodities, promovida como se fosse durar pra sempre e sem que o enorme custo socioambiental fosse incluído na conta. Neste sentido, a Olimpíada seria não apenas a conciliação dos povos, mas também a dos vários Brasis amalgamados num só, conflitos e contradições magicamente apagados.
Entre 2009 e 2016 aconteceu muita coisa. Mas aconteceu principalmente 2013. Se há algo que não vira passado facilmente é 2013, o incontornável que tantos querem contornar. É nos protestos das ruas que fica evidente que o imaginário de conciliação não poderá mais ser sustentado. Desde então, não há combinação, recolocação ou arranjo possível que dê uma imagem coesa ao Brasil – ou uma cara “brasileira” ao Brasil. As fraturas que historicamente foram ocultadas ou maquiadas já não podem ser. O Brasil ou os Brasis tornaram-se irredutíveis à conciliação também na produção de imagens e de símbolos.
Assim, o Brasil chega à Olimpíada real demais. Na lama que rompeu a barragem de Mariana, na merda boiando nas águas da Guanabara, no genocídio dos jovens negros pela Polícia Militar, na ciclovia que desaba matando gente no dia em que a tocha olímpica é acendida na Grécia. Na onça assassinada durante a passagem da tocha olímpica pela Amazônia. Dá para ficar enfileirando exemplos por parágrafos. Até o samba de Tom Jobim se contamina quando é o mosquito da dengue, do zika e da chicungunha que passa a ter asas abertas sobre a Guanabara.







A disputa narrativa entre golpe e não golpe pode soar como uma tentativa de identificação em meio a identidades que se desmancham

Mesmo a disputa narrativa entre golpe e não golpe pode expressar uma tentativa desesperada de identificação em meio a identidades que se desmancham. Como a de um Governo de esquerda que há muito já não era de esquerda, como a de apoio de movimentos sociais ao mandato de uma presidente que sancionou uma lei que criminaliza movimentos sociais, como a de fingir que quem está hoje no poder não era o aliado de ontem. Para além de estratégias e agendas, a falsa polarização pode também ser uma tentativa de colar um rosto que já não cabe na cara. Ou de vestir uma roupa porque qualquer roupa, mesmo uma fantasia, é menos desestabilizadora que a nudez.
Diante da fragmentação da autoimagem despontam várias reações identitárias. Uma delas é a de reeditar um outro estereótipo viciado, o do Brasil como “republiqueta de bananas”, o que não consegue fazer nada direito, o do fiasco diante do mundo, o do eterno país de segunda classe, com todos os preconceitos atrelados aos trópicos. O que antes foi positivado é negativado sempre que convém. E o que aqui está seria uma espécie de punição à ousadia de querer ser grande.
“Nós” expostos ao julgamento do “primeiro mundo”, curiosamente confundido com o mundo dos adultos, o que só pode ser uma piada diante dos acontecimentos internacionais recentes. O Brasil ridicularizado pelo Reino Unidoonde o voto do Brexit venceu? Pelos Estados Unidos que tem um Donald Trumpcom chances de vencer a presidência? Por uma França às voltas com terroristas produzidos por suas periferias? Por uma Europa que envergonha a si mesma ao (des)tratar os refugiados? São estas as matrizes que sabem o que fazem?







Entre as razões pelas quais Lula não é perdoado está o fim da crença de que é possível alcançar a paz no Brasil sem tocar nos privilégios

Essa falsificação do “Brasil volte ao seu lugar” tem pontos de contato com a ideia do retorno de certa elite ao poder – uma elite que, como se sabe, nunca saiu dele. Tem a ver com a ideia da volta “dos que sabem fazer as coisas”. Ou “dos que entendem de verdade de economia”. Ou da ideia de que a economia é a lente com a qual se enxerga a vida, crença laica que desponta com o absolutismo de um mandamento de Moisés. É preciso ter cuidado com quem chama o Brasil de “republiqueta de bananas”, porque esta pessoa ou grupo nunca se coloca neste Brasil, já que se considera a parte limpinha que foi se ilustrar no exterior. O sujo, o feio, o ignorante é o outro. Em geral, o “povo brasileiro”, essa abstração em nome da qual tantas atrocidades são cometidas.
Não é ruim que o Brasil chegue à Olimpíada sem uma cara. Ou mais semelhante ao antropofágico Abaporu de Tarsila do Amaral. Não é ruim que os estereótipos ruíram e todos os rearranjos antes possíveis já não parem mais em pé. Não é ruim se perceber fragmentado. Não é ruim se desidentificar para que outras identidades, múltiplas, se tornem possíveis. Já não dá para conciliar o inconciliável.
Não é um momento qualquer. E talvez a parte mais evidente do peso do que está sendo disputado seja o fortalecimento do Estado policial para reprimir o questionamento dos privilégios. E para criminalizar o crescente questionamento dos privilégios. E para encarcerar quem os questiona. O jogo é cada vez mais pesado, agora que ficou claro que não haverá conciliação. Agora, que o discurso de 2009 ruiu, e que seu autor, o grande conciliador, virou réu.
Há muitas razões para que diferentes setores não perdoem Lula. Uma delas é a de que ele deixou de fazer a grande mágica: a de que a paz no Brasil é possível sem que os privilégios dos mais ricos sejam tocados. A de que poderá se reduzir as desigualdades sem que alguém perca não apenas privilégios materiais, objetivos, mas também culturais e subjetivos. Essa ilusão era cara também para uma parte das várias elites. Continuar com os privilégios intactos e ainda por cima se sentir “do bem” é o máximo sonho de consumo.
Já não é possível seguir tentando colar rostos que não cabem mais. Ou insistir em encaixar faces que só couberam antes como falsificações. Ou, ainda, que eram apenas máscaras a serviço de apagamentos. Há muita potência neste momento em que o Brasil é um ponto de interrogação no espelho, em que o Brasil não consegue uma unidade no dizer sobre si mesmo, em que há gente tentando apagar a tocha olímpica com balde d’água. Há muita potência se as periferias virarem centros, desacomodando olhares viciados. Mas essa potência será perdida se, por não conseguirmos imaginar um país a partir de outras premissas, preferirmos carregar por aí rostos em decomposição.




Eliane Brum / A merda é o ouro dos espertos

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Menino do morro da Mangueira assiste os fogos da cerimônia de encerramento dos Jogos. 

A merda é o ouro dos espertos

Como a "Olimpíada da Superação"é usada para forjar identidade, unidade e consenso no Brasil do impeachment


ELIANE BRUM
29 AGO 2016 - 12:09 COT

A inversão é fascinante. A Olimpíada foi idealizada, em 2009, para colocar no pódio o Brasil grande. A apoteose do eterno país do futuro que finalmente chegava a um presente grandioso. Em 2016, o “sucesso” da festa busca recolocar o Brasil não apenas como o país que – ainda – tem futuro, mas como o país da “superação”. Não se trata mais, como era em 2009, de lançar a Olimpíada como a imagem que expressa “a verdade final” sobre o país. Em 2016, a Olimpíada é disputada, pelos vários atores, como a imagem capaz de tapar os buracos de um país. E devolver uma unidade, qualquer uma, ou um consenso, qualquer um, a um Brasil partido não em dois, mas em vários pedaços.





Em 2009, a questão era: veja como somos capazes de construir um país. Em 2016, a questão tornou-se: veja como somos capazes de fazer uma festa.
Não dá para tratar essa mudança de paradigma, como tantos têm tratado, como se fosse a mesma coisa. O foco, aqui, são as interpretações simbólicas dessa Olimpíada num momento tão agudo do Brasil. E o papel que exercem sobre a construção da realidade.
Quando dizem orgulhosos que a Baía da Guanabara estava maravilhosa e que o Rio continua lindo, trata-se da festa. A pergunta que trata de um país é: mas a Baía da Guanabara foi despoluída? E a resposta é não. A resposta é: a Baía da Guanabara continua cheia de merda.
Quando dizem eufóricos que nenhum atleta pegou Zika vírus, a pergunta é: mas e a população do Rio? Está salva do Zika e, mais do que do Zika, da dengue? E as mulheres que tiveram e ainda terão crianças com sérios danos cerebrais, têm e terão acesso à proteção e à saúde? Estas são as perguntas que tratam do país – e não da festa.
Quando dizem esfuziantes que o Rio nunca foi tão seguro como nos 17 dias de Olimpíada e que os mais de 80.000 policiais e soldados deveriam continuar nas ruas para defender os cidadãos “de bem”, a pergunta é: e nas comunidades? Morreu gente nas favelas, e não apenas o soldado da Força Nacional Hélio Andrade. Em geral, ele é considerado a única baixa no período dos jogos, já que os demais mortos são aqueles que o país se acostumou a considerar “matáveis”.Pelo menos 31 pessoas morreram e outras 51 ficaram feridas em 95 tiroteios no Rio Olímpico, segundo a Anistia Internacional. Não interessa para a festa? Deveria interessar para o país.
Qual foi o custo financeiro dessa festa (gastos ainda à espera de transparência), para um estado que decretou situação de “calamidade pública” menos de dois meses antes do megaevento, para uma cidade falida e para um país em crise? Quem mede o sucesso ou quem diz o que é sucesso? Ou sucesso para quem? Certamente não para os milhares de “removidos” para a realização das obras.




Diante do país sem rosto, cola-se a cara gasta de sempre

E, importante, sucesso aos olhos de quem? Quando alguém exalta que a Baía da Guanabara estava límpida, o que se entende é que a pessoa comemora o feito de conseguir esconder por duas semanas a merda dos olhos dos “gringos”, a quem interessa mostrar que seguimos bonitos por natureza. E alegres, muito alegres.
A frase no Facebook é cristalina: “Somos um país de pés-rapados, mas arrasamos numa festa”. Diante do país sem rosto, cola-se a cara gasta de sempre, a de que somos muito bons em festa. E na festa somos cordiais, alegres e hospitaleiros. Assim, tenta-se tapar buracos que já não podem ser tapados. Conflitos que já não podem ser encobertos pela “festa da miscigenação”. Mitos em decomposição.
Este é um país em que as cenas de pessoas se espancando por usarem camisetas de cores diferentes se tornaram corriqueiras. Era de se prever que qualquer unidade, onde não há nenhuma, qualquer consenso, onde não há nenhum, seria agarrado por quem disputa a narrativa. É bastante fascinante que a unidade forjada, que o brasileiro único, “O” brasileiro, seja, de novo e mais uma vez, essa pessoa muito boa em festa. É bastante fascinante que os brasileiros, que – ainda bem – já não podem dizer quem são ou o que são, possam ter o conforto de uma identidade fugaz. Ainda que essa identidade seja a de “arrasar na festa”.






A unidade forjada é a do velho clichê do brasileiro bom de festa

O mais fascinante, porém, é que essa narrativa tem se imposto com muito pouca crítica. A Olimpíada se deu com o processo de impeachment em curso. Acabaram os jogos e começou o julgamento da presidente Dilma Rousseff no Senado. Em vez de interpretar os sentidos, disputa-se a autoria do “sucesso”. E, assim, em nome da agenda de ocasião, ou da eleição de 2018, ocultam-se – ou mesmo apagam-se – as contradições. Apresentada – e consensuada pelos vários atores políticos – como um legado de “sucesso”, a quem pertence a Olimpíada é tudo o que passa a interessar. Em vez de disputar o país, disputa-se a festa. É nesse nível o rebaixamento do debate.
É também assim que se invoca, de novo e mais uma vez, o Complexo de Vira-Lata, conceito do cronista Nelson Rodrigues, grande intérprete do futebol e do Brasil do século 20. Obviamente o vira-lata é sempre o outro. A suspeita de que a Olimpíada não iria funcionar – ou “dar certo” – seria fruto da falta de autoestima dos brasileiros, que se sentiriam inferiorizados diante dos gringos. Cogita-se também a possibilidade de que o verdadeiro vira-lata seja aquele que tem como única medida o olhar dos gringos e que necessita da sua aprovação para saber se tem valor. O curioso é que, na tese da viralatização, usa-se a festa como categoria totalizante. Se em alguns casos isso pode ser só um problema cognitivo, em outros soa como má fé.
É aí que entra um conceito essencial para compreender o momento: “superação”. A Olimpíada de 2009 foi sonhada como o coroamento de um país que já se superou. Ou que já se tornou sua própria promessa, com a melhoria da qualidade de vida de dezenas de milhões e a redução das desigualdades. Uma nação que já havia pavimentado seu lugar entre as grandes economias do mundo, um Brasil de “cidadania plena”, um “país de primeira classe”. Na Olimpíada de 2016, é a superação que passa a ser a qualidade de todo um país. A qualidade em si, o moto-contínuo. O looping eterno. O pé-rapado, que continua pé-rapado, mas que arrasa na festa.
É assim que nossos atletas tornam-se sempre “histórias de superação” a serem enaltecidas. Gente como Rafaela Silva e Isaquias Queiroz. Se eles superaram todas as desigualdades e assimetrias do Brasil e tornaram-se atletas capazes de ganhar medalhas no pódio, é um orgulho para eles. Mas é imperativo lembrar que venceram apesar do Brasil. E esse fato deveria ser motivo de vergonha para o país.
Consumido pela máquina de fazer dinheiro que envolve mídia e megaeventos, o que é exceção – vencer contra tudo e contra todos – é convertido em qualidade totalizante. Assim, é o Brasil inteiro que se torna o país “da superação”. É a Olimpíada “da superação”. O que deveria ser vergonha, o fato de o país não garantir a base mínima para suas crianças e jovens desenvolverem suas potencialidades no esporte – e também na matemática e na literatura –, é convertido em orgulho nacional.









A capacidade de superação é mística fartamente distribuída onde a renda é concentrada na mão de poucos e dos mesmos

Essa falsificação serve a muitas coisas. Entre elas, enriquecer muita gente e alimentar o entretenimento disfarçado de jornalismo de algumas redes de TV. Serve ainda a algo bem perverso, com graves consequências na vida concreta do país, que é estimular a crença de que basta ter vontade pessoal para conseguir vencer num país em que a maioria vive em terra arrasada, em escolas arrasadas, em insegurança alimentar, seja por desnutrição ou por obesidade. Assim, se você não vence, é problema seu. O Estado é deresponsabilizado, as distorções históricas são apagadas. E, portanto, não há razão para pensar em redistribuição de renda ou em reforma agrária ou em demarcação de terras tradicionais. O brasileiro, esse unicórnio, se supera. É pé-rapado mas arrasa numa festa.
É o discurso de Galvão Bueno, da Rede Globo, calculadamente lacrimoso: “O esporte é a ferramenta que faz Rafaela Silva, nascida na pobreza da Cidade de Deus, e o supercampeão Bernardinho, filho da classe média carioca, dividirem o mesmo sonho e chegarem ao mesmo lugar”. Qual é a mensagem dessa igualdade forjada em um dos países mais desiguais do mundo? No país da superação, não é preciso tocar nos privilégios, porque tudo depende da força de vontade individual. A capacidade de superação é mística fartamente distribuída onde a renda é concentrada na mão de poucos – e dos mesmos.
Deveria produzir alguma interrogação o fato de que alguém como Galvão Bueno, com tudo o que é e representa, tenha se tornado uma espécie de porta-voz do espírito olímpico. Discursos semelhantes ao dele, de exaltação da Olimpíada, foram repetidos até mesmo por intelectuais que até ontem exibiam pensamento complexo. Não só pela direita, mas também pela esquerda.





Parte da esquerda adere à mesma falsificação da mídia que no restante do tempo acusa de golpista

Para parte da direita, trata-se, entre outras coisas, de garantir que o país tem unidade para seguir após o impeachment, com a agenda conservadora em curso. O Brasil é o que sempre foi, o período Lula-Dilma apenas uma interrupção momentânea. Para uma parcela da esquerda, o ponto é garantir a Olimpíada como um legado usurpado de Lula, caso ele chegue às eleições de 2018. Em nome dos projetos de poder, sacrifica-se a complexidade e forja-se o consenso oportunista. O que não cabe na versão é relegado a questões de menor importância.
Mais uma vez, em nome da agenda de ocasião, parte da esquerda se cala diante das tantas falsificações da Olimpíada da Superação. E reedita uma espécie de conciliação imagética, uma espécie de trégua olímpica, com a mesma mídia que no restante do tempo acusam de golpista. Disputa-se a assinatura do espetáculo, o sucesso já foi pactuado.
Na mística da superação, quando aqueles que deveriam se superar sofrem uma derrota, são punidos como se traíssem todo um país. É neste momento que os conflitos aparecem, e o racismo, a homofobia e o machismo do povo alegre que arrasa numa festa explodem. Como tão bem compreendeu Rafaela Silva, que ao ser derrotada na Olimpíada de Londres, em 2012, foi chamada de “macaca” nas redes sociais, em tal volume e virulência que quase desistiu do judô. Em 2016, ao ganhar o ouro na sua categoria, virou heroína nacional. Ninguém dúvida que, se perdesse, seria de novo “macaca”.
A nadadora Joanna Maranhão conheceu bem a “cordialidade” do povo brasileiro ao ficar fora da semifinal dos 200m borboleta. Joanna, que anos atrás teve a coragem de denunciar que foi abusada por seu técnico quando menina, ouviu nas redes sociais que, por ter perdido, “deveria ser estuprada novamente”. O Brasil é homofóbico, machista, racista e xenófobo, denunciou Joanna, desafiando o país alegre e hospitaleiro – ou “o povo que se comportou muito bem nesta Olimpíada”. Joanna e Rafaela exibiram maturidade ao não se deixarem engolir pela máquina de entretenimento. Ao contrário, arriscaram-se a expor os conflitos quando ninguém queria saber deles.
O país não fracassa quando um atleta perde numa Olimpíada. Brasileiras como a judoca Rafaela Silva são vitoriosas apenas por chegarem vivas à idade adulta. Alcançar uma Olimpíada, ganhando ou não, é uma enormidade. O Brasil fracassa porque no mesmo período da Olimpíada em que Rafaela subiu ao pódio, jovens como ela foram executados a tiros bem perto dali.
O “sucesso” – ou a “superação” – do Brasil olímpico parece ser o de ter conseguido esconder dos olhos dos gringos a merda toda por duas semanas. E não apenas a da Baía da Guanabara. É verdade que um país pode ser medido não pelo seu sucesso, mas pela régua com que mede seu sucesso.
A Olimpíada, como conceito fechado, é grandiosa. Os atletas se dedicam duramente para fazer desse momento um espetáculo, para criar beleza. Fizeram espetáculo mesmo na Olimpíada de Berlim, em 1936, na Alemanha nazista. Uso esse exemplo radical porque ele ajuda a deixar mais claro que uma Olimpíada não pertence apenas aos atletas nem serve apenas à celebração dos povos. Parece óbvio, mas não é o que temos visto em tantas justificativas. Os usos de uma Olimpíada, assim como as narrativas sobre ela, são políticos, no sentido amplo (e seguidamente também no rasteiro). E a forma como cada um dela participa também é política.






A reedição do Complexo de Vira-Lata pode revelar a impossibilidade de criar conceitos originais num momento tão desafiador

É neste campo que chamo a atenção para “o Brasil provou que sabe fazer uma Olimpíada”. Há que se ter muito cuidado com quem coloca algo tão complexo na perspectiva do pessimismo/otimismo. Há que se ter considerável delicadeza mesmo com o conceito do Complexo de Vira-Lata. Não se sabe se ele foi revivido porque de fato faz eco, ou pela incapacidade de criar conceitos originais para um momento tão desafiador do Brasil. Tendo a apostar mais nesta segunda hipótese – e sigo defendendo que nossa crise é também de palavra. De linguagem e de estética.
Há uma diferença entre ser capaz de fazer uma festa, a medalha de ouro de 2016. E ser capaz de construir um país, a medalha de ouro de 2009. É preciso marcar essa diferença para não perder a Olimpíada do dia seguinte.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas.

Vargas Llosa / ‘England your England’

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Fernando Vicente

‘England your England’

Europa vai sofrer um descrédito considerável com o 'Brexit', mas o dano maior recairá sobre o Reino Unido com a ameaça de desmembramento e uma lenta decadência


MARIO VARGAS LLOSA
10 JUL 2016 - 10:16 COT

Vivi muitos anos em Londres e ali aprendi a admirar as virtudes inglesas: o pragmatismo que vacina seus cidadãos contra os fanatismos ideológicos, seu individualismo, base dos seus excêntricos, seu espírito tolerante e democrático, seu respeito pelas instituições, as leis e as tradições. Nos dias anteriores ao referendo estive lá e todas aquelas virtudes brilharam por sua ausência, tanto que me pareceu estar em outro país. Um país inflamado, presa da demagogia nacionalista mais ridícula e xenófoba, vertida em abundância pelos defensores do Brexit. Estes apresentavam a saída do Reino Unido da União Europeia como “a recuperação da independência da nação”, uma panaceia com a qual a Grã-Bretanha obteria a prosperidade e o absoluto controle de uma imigração que Nigel Farage, o líder do Partido da Independência do Reino Unido, mostrava em um cartaz racista como uma invasão enlouquecida de subdesenvolvidos negros, mulatos, africanos e asiáticos, ao mesmo tempo em que o ex-prefeito de Londres Boris Johnson expressava seu temor de que a Turquia, cuja incorporação à Europa pressagiava iminente, teria o direito de inundar o Reino Unido com 78 milhões de turcos.
A demagogia, o nacionalismo mais chauvinista e estúpido, os preconceitos racistas pareciam ter transformado a Grã-Bretanha, da noite para o dia, em um paizinho terceiro-mundista. E essa impressão alcançou para mim seu apogeu quando Boris Johnson, o despenteado e falastrão líder conservador, batia o recorde de todas as mentiras protestando porque, segundo ele, os euroburocratas de Bruxelas –os inimigos a abater para devolver a liberdade ao Reino– gastavam os impostos dos esgotados cidadãos britânicos subsidiando as cruéis touradas na Espanha!


Enquanto os defensores do Brexit, com bom apoio dos meios de comunicação, inundavam o país com exageros, falsidades, calúnias e uma patriotada de cartazes e baixo estofo, os defensores de que a Grã-Bretanha continuasse na Europa –penso, sobretudo, no Partido Trabalhista– mostravam uma languidez e pessimismo tais, a começar por seu letárgico líder, Jeremy Corbyn (agora questionado por boa parte de seus camaradas, que exigem a sua renúncia por não ter defendido melhor a que era a política oficial do trabalhismo), que, seria possível dizer, se resignavam de antemão a uma derrota que pelo menos alguns deles secretamente desejavam. Não é de estranhar, por isso, que nas cidadelas operárias da Inglaterra o voto em favor da saída da Europa atropelasse o da permanência.
O único que defendia essa opção com energia era o primeiro-ministro David Cameron, ou seja, o mesmo que, com uma precipitação desnecessária e lamentável, convocou esse referendo, sem necessidade legal alguma, por um oportunismo político de circunstâncias, algo que pagou com o fim de sua carreira política –e um erro do qual dificilmente a história futura da Inglaterra o desculpará.

Grã-Bretanha se tornou um país inflamado, presa da demagogia nacionalista mais ridícula e xenófoba

E agora? A Europa vai sofrer um descrédito considerável com o distanciamento do Reino Unido, o país, vale a pena recordar agora mais do que nunca, que com heroísmo sem igual salvou o velho continente de Hitler e dos nazistas. E não só porque a Grã-Bretanha é a segunda potência industrial europeia, mas porque ela era, dentro da Europa, a defensora mais enérgica das políticas de livre comércio e da integração de todos os mercados do mundo. O triunfo do Brexit estabelece um péssimo precedente e é uma contribuição inestimável aos partidos, movimentos e grupúsculos antieuropeus, geralmente fascistoides, como a Frente Nacional, de Marine Le Pen, na França, a Alternativa para a Alemanha, a frente encabeçada por Geert Wilders na Holanda e aqueles que na Polônia, Áustria, Hungria e países escandinavos quiseram, em nome do nacionalismo, dar o golpe final à mais ambiciosa empreitada democrática do Ocidente nos tempos modernos.
Mas, provavelmente, como escreveu Chris Patten em um dos artigos mais lúcidos que li sobre os resultados do referendo britânico, o dano maior recairá sobre o próprio Reino Unido. Que a Grã-Bretanha desapareça, com a secessão da Escócia e da própria Irlanda do Norte– que, em consequência do Brexit, perderá suas fronteiras abertas com a República da Irlanda–, é uma perspectiva perfeitamente possível, sobretudo tratando-se da Escócia, onde mais de 62% dos eleitores defenderam a opção europeia.
Porém, mais grave ainda que seu possível desmembramento, o que ameaça agora a Inglaterra é uma lenta decadência, vítima de um nacionalismo político e econômico ultrapassado, que vai contra a tendência dominante no restante do mundo e, sobretudo, no Ocidente, uma tendência que precisamente o Reino Unido estimulou nos anos dos governos de Margaret Thatcher, John Major e Tony Blair e que agora renegou de maneira pouco menos que suicida.

A decepção dos vencedores do referendo será muito próxima e muito grande no que concerne à imigração

Uma análise superficial dos resultados do referendo mostra uma divisão geracional e intelectual inequívoca: os ingleses mais jovens e mais bem-educados, mais conscientes do risco que o isolamento significava para o seu futuro, votaram pela Europa; os mais velhos e menos preparados, pela saída. A nostalgia de um mundo que se foi e não vai mais voltar prevaleceu sobre o realismo; e preferir a irrealidade e os sonhos ao mundo verdadeiro só traz benefícios no campo da arte e da literatura; no da vida política e social, o mais comum é gerar catástrofes.
A decepção dos vencedores do referendo será muito próxima e muito grande no que concerne à imigração, quando perceberem que sua vitória não vai impedir, nem diminuir um pingo sequer, a chegada dos temidos forasteiros, pois o que Orwell em um de seus melhores ensaios chamou ironicamente de England your England simplesmente já não existe, salvo na fantasia passadista de alguns sonhadores. (Em meio à campanha se descobriu, por exemplo, que o albiônico Boris Johnson, caudilho do nacionalismo britânico, tinha ancestrais turcos.) E que não é a União Europeia que traz essas ondas de imigrantes a suas praias, mas a necessidade que a Grã-Bretanha tem deles para prover os trabalhos que os ingleses já não fariam nem à força e as leis sociais que, com mais generosidade que realismo, foram feitas em épocas de bonança para favorecer essa imigração, que então parecia tão necessária. (Continua sendo, mais que nunca, se os países desenvolvidos aspiram a manter seus altos níveis de existência, embora as ramelas nacionalistas impeçam que se veja isso agora.)
Em O Leão e o Unicórnio, Orwell fala com muito carinho da Inglaterra e destaca, com justiça, as virtudes de sua gente comum, seu amor à liberdade, sua sobriedade, o respeito pelo outro, sua crença em que as leis foram feitas para favorecer o bem e o bom e que, portanto, têm de ser cumpridas. E resume assim suas ideias (cito de memória): “É um bom país, com as pessoas erradas no controle”. Lembrei muito desse belo ensaio nestes dias deprimentes. Porque se o “controle” da Inglaterra ficará agora nas mãos dos homens do Brexit, como pede o pequeno führer Nigel Farage, a terra de Shakespeare será, sim, transformada de tal modo que muito em breve nem sequer a boa mãe que a pariu a reconhecerá

Eternamente jovens? / Uma droga capaz de postergar a morte transformará a sociedade XLISTO

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Eternamente jovens?

A medicina busca frear o envelhecimento e alongar a vida

Uma droga capaz de postergar a morte transformará a sociedade


JAVIER SAMPEDRO
6 JUN 2015 - 17:00 COT

Qual é o maior fator de risco para contrair doenças mortais? O tabaco, a radiação ultravioleta do sol, o sedentarismo, encher-se de açúcar? Nada disso: é oenvelhecimento. Por essa razão, e porque a expectativa média de vida estáaumentando nos países ocidentais e nas potências emergentes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que o número de pessoas que sofrem das doenças da idade —infarto, câncer e neurodegeneração— vai dobrar nas próximas duas décadas. Que vantagem tem, então, viver cada vez mais?

A pergunta esconde uma armadilha. A expectativa média de vida, de fato, está aumentando nos países ocidentais a uma taxa de dois anos e meio por década, 25 anos por século. Mas a principal causa disso são as melhoras progressivas no tratamento do infarto, que continua sendo o grande açougueiro das sociedades desenvolvidas. Como assinalou repetidamente Valentín Fuster, diretor do Centro Nacional de Pesquisas Cardiovasculares (CNIC), esses métodos são caros e pouco eficazes, porque raramente devolvem ao infartado a qualidade de vida que tinha antes. Nosso principal truque para viver mais não conduz a um futuro sustentável.

Mas há outra forma de viver mais, pelo menos em princípio: uma forma que não consiste em prolongar “o ultraje dos anos”, como Borges chamou a velhice, mas em adiar sua chegada. Ou seja, frear o envelhecimento. É como vender um elixir no deserto —e, na verdade, ninguém sabe como fazer isso ainda, apesar de todo o barulho— , mas o assunto é um dos mais sérios abordados pela pesquisa biológica de vanguarda hoje em dia. É o único enfoque que será capaz de proporcionar mais anos de vida (lifespan), e também de saúde (healthspan). O único futuro sustentável.

Frear o envelhecimento e alongar a vida, entretanto, é um objetivo ambicioso. Requer brincar de Deus, para empregar a frase preferida dos setores críticos à genética. Porque uma coisa é a expectativa média de vida e outra muito diferente é a vida máxima que uma espécie pode alcançar. A primeira pode ser aumentada com vacinas, antibióticos e saneamento básico, principalmente ao salvar a vida das crianças. Mas a segunda é fruto da evolução e, portanto, está inscrita em nossos genes.
Na geologia, a oxidação de um metal é uma simples função sua exposição ao oxigênio da atmosfera e à intempérie. Na biologia, entretanto, o envelhecimento não é mera consequência da passagem do tempo. Todos os animais são feitos de proteínas, açúcares, gorduras e ácidos nucleicos e, apesar disso, as moscas morrem em seis semanas, os ratos aos quatro anos, os caramujos aos 15, os golfinhos aos 30, os leões aos 40, os macacos aos 50, as corujas aos 65, os humanos aos 90 —ou aos 122, se considerarmos o recorde mundial— e as tartarugas aos 200. E veja bem: uma mosca morre de velha a ponto de ser utilizada como modelo biológico para estudo do Alzheimer humano.


A idade máxima de uma espécie está gravada em seus genes. E, por mais fatalista que soe a palavra gene, essa é precisamente a grande esperança dos pesquisadores

Esses dados simples mostram que a idade máxima de uma espécie está gravada em seus genes. E, por mais fatalista que soe a palavra gene, essa é precisamente a grande esperança dos pesquisadores: os genes são moléculas químicas, e tanto sua atividade como seus efeitos podem ser moduladas com outras moléculas químicas, ou candidatos a fármacos. E quase todas as linhas de pesquisa convergem para identificar os tipos de fármacos mais promissores. Os alvos —os processos biológicos que causam diretamente o envelhecimento— são o metabolismo da nutrição, a atividade das mitocôndrias (as pequenas usinas energéticas de nossas células) e a autofagia, um desconcertante processo pelo qual nossas células doentes digerem a si mesmas.
A lista de instituições públicas de pesquisa, empresas de biotecnologia e fármacos candidatos ao teste clínico é interminável, mas cabe citar os exemplos do Buck Institute, em São Francisco (EUA), que conseguiu multiplicar por cinco a expectativa de vida de um tipo de minhocas de laboratório, ou o Centro Nacional de Pesquisas Oncológicas (CNIO) na Espanha, que duplicou as possibilidades de sobrevivência de ratos que envelheciam mais rápido do normal. Outro centro de referência é o Instituto Max Planck, na Alemanha, onde concluíram, entre outras coisas, que os genes maternos são determinantes para viver mais anos. Prolongar a vida se transformou também em outra ambição do Vale do Silício, tanto que o Google criou uma empresa dedicada a isso (a California Life Company).
Todas essas instituições confluem nesses poucos processos biológicos fundamentais. Uma característica especialmente chocante desses processos é sua coincidência quase exata com os que, conforme concluíram outras linhas de pesquisa independentes, causam o câncer, os transtornos cardiovasculares e as doenças neurodegenerativas como o Alzheimer e o Parkinson: as doenças da idade, e as principais causas de morte e sofrimento planetárias, exceto nos países que ainda não têm condições de combater infecções.
elite científica do envelhecimento considera especialmente interessantes três estratégias para prolongar a saúde e a vida: a restrição calórica, a atividade físicae certas pequenas moléculas (candidatos a fármacos) como a espermidina, a metformina, a rapamicina e o resveratrol, o componente saudável do vinho tinto. Mas não abra a garrafa ainda: a quantidade de vinho tinto que teria de beber é incompatível com a vida, e portanto não pode alongá-la. A ideia é encontrar ou sintetizar compostos que ampliem em várias ordens de magnitude os efeitos longevos do vinho e evitem seus venenos. E o mais provável é que o resultado final não cause embriaguez, nem afogue as dores. Salvo as associadas à velhice.




LÍDERES ETERNOS


Fidel Castro. Seu médico durante anos, Eugenio Selman, fundou o Clube dos 120, em que pode entrar qualquer idoso, entre eles o líder cubano. Sua receita para viver mais: uma atitude positiva e “ética” frente à vida e não fumar. Não foi suficiente para evitar que Castro sofresse de graves problemas intestinais em 2006 que Selman não soube diagnosticar. Não é seu médico, mas continua afirmando que Castro, de 88 anos, viverá mais de 140 anos.
Kim Il Sung. A obsessão pela eternidade do fundador da Coreia do Norte, avô do atual presidente, levou-o a abrir um centro de pesquisa para prolongar a vida até os 100 anos. Além disso, recebia transfusões de sangue de jovens de vinte anos que eram alimentados de forma especial. Kim morreu aos 82 anos, longe de seu objetivo, mas acima da média do país (64 anos).

As instituições internacionais e os serviços de estudos dos bancos saturaram a atenção do público com suas análises prospectivas das consequências do envelhecimento da população, um fenômeno em curso em todos os países desenvolvidos devido ao aumento da idade média e da queda da natalidade. Os maiores de 65 serão uma proporção cada vez maior da população e votarão em partidos que prometerem mais aumentos na aposentadoria às custas dos minoritários jovens que ainda estiverem trabalhando; como os velhos gostam de adoecer, os custos da saúde vão disparar no mesmo ritmo que os planos de previdência privada.
Todas essas previsões estão fadadas ao mais estrondoso fracasso. Uma única droga que adie o envelhecimento humano, mesmo que seja em uma medida modesta, bastará para jogar no contêiner do papel reciclado todos esses estudos. Primeiro, porque multiplicará por 10 ou por 100 a porcentagem de maiores de 65 em qualquer país. E segundo, e mais importante ainda, porque esses velhos estarão em condições de trabalhar, aprender e produzir: em vez de trazerem mais custos para a saúde pública e os seguros, vão reduzi-los de forma drástica. Os caríssimos e ineficazes tratamentos para o infarto que hoje levam a parte dos impostos serão cada vez menos importantes.
Mas isso é o futuro, essa coisa que os economistas nunca sabem predizer. Nem os cientistas. No momento, a única estratégia promissora para alongar a vida e atrasar as doenças da idade é a restrição calórica: comer 30% menos do que pede o corpo, e com cuidado para que não falte nenhum nutriente essencial. Ou seja, passar fome 24 horas do dia durante todos os dias de sua vida. Não está provado que alonga a vida em humanos —um experimento longo e difícil—, mas funciona em todo bicho vivente, do verme ao camundongo. Você está disposto a submeter-se a essa tortura?
Se não estiver, lembre o que disse o filósofo suíço do século XIX, Henri-Frédéric Amiel: “Envelhecer é a obra-prima da vida”. Ou o que disse Chesterton: “Vou envelhecer para tudo, para o amor, para a mentira, mas nunca envelhecerei para o assombro”. E me permitam completar a citação amputada que ofereci de Borges no início: “Converter o ultraje dos anos em música, rumor e símbolo”. Longa vida ao leitor.



Amy Winehouse / Uma recordação em canções inéditas

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Amy Winehouse

Amy Winehouse: uma recordação em canções inéditas

Com músicas nunca publicadas, um percurso pelo legado da cantora, morta há cinco anos


FERNANDO NAVARRO
Madri 26 JUL 2016 - 07:23 COT



Show de Amy Winehouse no Rock in Rio de Madri em 2008. CLAUDIO ÁLVAREZ / EL PAÍS VÍDEO
Há cinco anos, em 23 de julho de 2011, o mundo se emocionava com a notícia da morte de Amy Winehouse. Seu legado era breve, mas impactante. Aquela jovem que se consumia em vida representou a última grande estrela da música popular, uma voz sensacional e arrebatadora que deixou algumas canções inesquecíveis.
Pouco depois de sua morte, comentou-se que existiam muitas composições inéditas gravadas. Com o tempo, muitas delas apareceram na Internet. Nesse apanhado foram escolhidas somente seis delas (entre descartes e interpretações na televisão) de um número ainda maior de possibilidades.

Long Day

O disco Frank foi a bem-sucedida estreia de Amy Winehouse, que se transformou em uma estrela da noite para o dia. Essa canção fala do cansaço existencial e a força da esmagadora rotina em uma pessoa que gostava de viver apaixonadamente. Composta em sua primeira etapa, parece antecipar todas as consequências de se transformar em uma estrela e perder a intimidade, tal e como acabou acontecendo em sua vertiginosa vida.





When My Eyes

Das sessões de Frank também vem essa estupenda composição, que chegou a ser considerada para fechar o disco. Amy canta mais como uma diva do jazz, com um estilo entre retrô e contemporâneo, que lembra a grande Dinah Washington, mas que sempre se movimenta em seu próprio território, com sua impagável voz aveludada e ferida. Com sua letra fantasiosa, capta a época feliz antes de cair no abismo existencial das drogas e da solidão.





Teach Me Tonight

A talentosa vocalista já mostrou seu amor por Dinah Washington, a quem tanto devia musicalmente falando, no programa de Jools Holland na BBC. Lá interpretou ao piano Teach Me Tonight, uma canção famosa na voz de Washington. Na verdade, colocamos essa por constatar como Dinah a influenciou, mas foi incluída na edição deluxe de Frank.





Jazz n'Blues

Uma das composições mais antigas de seu repertório. É uma colaboração com Edward Bigham, dos anos anteriores à publicação de Frank. Com uma cadência algo jazz, a música mostra o fraseado de Winehouse que mais tarde faria tanto sucesso. O título é uma referência aos dois gêneros dos quais a cantora tanto gostava.





Detachment

Essa canção está no documentário Amy, que repassa o auge e a queda da artista. Faz parte das sessões de Back to Black, em 2006. Dessa forma, como todo o álbum, é uma reflexão sobre o tóxico relacionamento amoroso que tinha com Blake Fielder-Civil.





Alcoholic Logic

Uma dura radiografia da vida de Amy Winehouse no período em que compôs e lançou Back to Black. A letra compara seu abuso de álcool e drogas com a perigosa e obsessiva relação com Blake. E o faz com uma espécie de rap, um R&B atual denso e cantado de maneira desafiadora.




EL PAÍS




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