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Eliane Brum / Os novos “vândalos” do Brasil

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Os novos “vândalos” do Brasil

O rolezinho, a novidade deste Natal, mostra que, quando a juventude pobre e negra das periferias de São Paulo ocupa os shoppings anunciando que quer fazer parte da festa do consumo, a resposta é a de sempre: criminalização. Mas o que estes jovens estão, de fato, “roubando” da classe média brasileira?


ELIANE BRUM
23 DEZ 2013 - 06:51 COT

O Natal de 2013 ficará marcado como aquele em que o Brasil tratou garotos pobres, a maioria deles negros, como bandidos, por terem ousado se divertir nos shoppings onde a classe média faz as compras de fim de ano. Pelas redes sociais, centenas, às vezes milhares de jovens, combinavam o que chamam de “rolezinho”, em shopping próximos de suas comunidades, para “zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras” ou “tumultuar, pegar geral, se divertir, sem roubos”. No sábado, 14, dezenas entraram no Shopping Internacional de Guarulhos, cantando refrões de funk da ostentação. Não roubaram, não destruíram, não portavam drogas, mas, mesmo assim, 23 deles foram levados até a delegacia, sem que nada justificasse a detenção. Neste domingo, 22, no Shopping Interlagos, garotos foram revistados na chegada por um forte esquema policial: segundo a imprensa, uma base móvel e quatro camburões para a revista, outras quatro unidades da Polícia Militar, uma do GOE (Grupo de Operações Especiais) e cinco carros de segurança particular para montar guarda. Vários jovens foram “convidados” a se retirar do prédio, por exibirem uma aparência de funkeiros, como dois irmãos que empurravam o pai, amputado, numa cadeira de rodas. De novo, nenhum furto foi registrado. No sábado, 21, a polícia, chamada pela administração do Shopping Campo Limpo, não constatou nenhum “tumulto”, mas viaturas da Força Tática e motos da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) permaneceram no estacionamento para inibir o rolezinho e policiais entraram no shopping com armas de balas de borracha e bombas de gás.
Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das periferias da Grande São Paulo está sendo criminalizada?
Primeiro, por causa do passo para dentro. Os shoppings foram construídos para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram superar a margem e entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens negros e pobres, no imaginário nacional: divertir-se fora dos limites do gueto. E desejar objetos de consumo. Não geladeiras e TVs de tela plana, símbolos da chamada classe C ou “nova classe média”, parcela da população que ascendeu com a ampliação de renda no governo Lula, mas marcas de luxo, as grandes grifes internacionais, aqueles que se pretendem exclusivas para uma elite, em geral branca.
Antes, em 7 de dezembro, cerca de 6 mil jovens haviam ocupado o estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, e também foram reprimidos. Vários rolezinhos foram marcados pelas redes sociais em diferentes shoppings da região metropolitana de São Paulo até o final de janeiro, mas, com medo da repressão, muitos têm sido cancelados. Seus organizadores, jovens que trabalham em serviços como o de office-boy e ajudante geral, temem perder o emprego ao serem detidos pela polícia por estarem onde supostamente não deveriam estar – numa lei não escrita, mas sempre cumprida no Brasil. Seguranças dos shoppings foram orientados a monitorar qualquer jovem “suspeito” que esteja diante de uma vitrine, mesmo que sozinho, desejando óculos da Oakley ou tênis Mizuno, dois dos ícones dos funkeiros da ostentação. Às vésperas do Natal, o Brasil mostra a face deformada do seu racismo. E precisa encará-la, porque racismo, sim, é crime.
“Eita porra, que cheiro de maconha” foi o refrão cantado pelos jovens ao entrarem no Shopping Internacional de Guarulhos. O funk é de MC Daleste, que afirma no nome artístico a região onde nasceu e se criou, a zona leste, a mais pobre de São Paulo, aquela que todo o verão naufraga com as chuvas, por obras que os sucessivos governos sempre adiam, esmagando sonhos, soterrando casas, matando adultos e crianças. Daleste morreu assassinado em julho com um tiro no peito durante um show em Campinas – e assassinato é a primeira causa de morte dos jovens negros e pobres no Brasil, como os que ocuparam o Shopping Internacional de Guarulhos.
A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas, a clientela correu. Uma das frequentadores do shopping disse a frase-símbolo à repórter Laura Capriglione, na Folha de S. Paulo: “Tem de proibir este tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este”. Nos dias que se seguiram, em diferentes sites de imprensa, leitores assim definiram os “rolezeiros” (veja entrevista abaixo): “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Negros emerge aqui como palavra de ofensa.

As novelas já vendiam uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de riqueza. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem neste mundo.”

O funk da ostentação, surgido na Baixada Santista e Região Metropolitana de São Paulo nos últimos anos, evoca o consumo, o luxo, o dinheiro e o prazer que tudo isso dá. Em seus clipes, os MCs aparecem com correntes e anéis de ouro, vestidos com roupas de grife, em carros caros, cercado por mulheres com muita bunda e pouca roupa. (Para conhecer o funk da ostentação, assista ao documentário aqui). Diferentemente do núcleo duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90, que negava o sistema, e também do movimento de literatura periférica e marginal que, no início dos anos 2000, defendia que, se é para consumir, que se compre as marcas produzidas pela periferia, para a periferia, o funk da ostentação coloca os jovens, ainda que para a maioria só pelo imaginário, em cenários até então reservados para a juventude branca das classes média e alta. Esta, talvez, seja a sua transgressão. Em seus clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os signos dos ricos. Graças ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram de fato e tiveram acesso ao mundo que celebravam.
Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao sistema, tornou o funk da ostentação desconfortável para uma parcela dos intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças culturais das periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e a repressão que se seguiu a eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência, celebrada nos últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os shoppings, a juventude pobre e negra das periferias não estava apenas se apropriando dos valores simbólicos, como já fazia pelas letras do funk da ostentação, mas também dos espaços físicos, o que marca uma diferença. E, para alguns setores da sociedade, adiciona um conteúdo perigoso àquele que já foi chamado de “funk do bem”.
A resposta violenta da administração dos shoppings, das autoridades públicas, da clientela e de parte da mídia demonstra que esses atores decodificaram a entrada da juventude das periferias nos shoppings como uma violência. Mas a violência era justamente o fato de não estarem lá para roubar, o único lugar em que se acostumaram a enxergar jovens negros e pobres. Então, como encaixá-los, em que lugar colocá-los? Preferiram concluir que havia a intenção de furtar e destruir, o que era mais fácil de aceitar do que admitir que apenas queriam se divertir nos mesmos lugares da classe média, desejando os mesmo objetos de consumo que ela. Levaram uma parte dos rolezeiros para a delegacia. Ainda que tivessem de soltá-los logo depois, porque nada de fato havia para mantê-los ali, o ato já estigmatizou-os e assinalará suas vidas, como historicamente se fez com os negros e pobres no Brasil.
Jefferson Luís, 20 anos, organizador do rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos, foi detido, é alvo de inquérito policial, sua mãe chorou e ele acabou cancelando outro rolezinho já marcado por medo de ser ainda mais massacrado. Ajudante geral de uma empresa, economizou um mês de salário para comprar a corrente dourada que ostenta no pescoço. Jefferson disse ao jornal O Globo: “Não seria um protesto, seria uma resposta à opressão. Não dá para ficar em casa trancado”.
Por esta subversão, ele não será perdoado. Os jovens negros e pobres das periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em trabalhar na construção civil e em serviços subalternos das empresas de segunda a sexta, e ficar trancados em casas sem saneamento no fim de semana, querem também se divertir. Zoar, como dizem. A classe média até aceita que queiram pão, que queiram geladeira, sente-se mais incomodada quando lotam os aeroportos, mas se divertir – e nos shoppings? Mais uma frase de Jefferson Luiz: “Se eu tivesse um quarto só pra mim hoje já seria uma ostentação”. Ele divide um cômodo na periferia de Guarulhos com oito pessoas.
Neste Natal, os funkeiros da ostentação parecem ter virado os novos “vândalos”, como são chamados todos os manifestantes que, nos protestos, não se comportam dentro da etiqueta estabelecida pelas autoridades instituídas e por parte da mídia. Nas primeiras notícias da imprensa, o rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos foi tachado de “arrastão”. Mas não havia arrastão nenhum. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira faz uma provocação precisa: “Se fosse um grupo numeroso de jovens brancos de classe média, como aconteceu várias vezes, seria interpretado como um flash mob?”.

A ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.”

Por que os administradores dos shoppings, polícia, parte da mídia e clientela só conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres dentro de um shopping como “arrastão”? Há várias respostas possíveis. Pereira propõe uma bastante aguda: “Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem?”. Seria este o “roubo” imperdoável, que colocou as forças de repressão na porta dos shoppings, para impedir a entrada de garotos desarmados que queriam zoar, dar uns beijos e cobiçar seus objetos de desejo nas vitrines?
Para nos ajudar a pensar sobre os significados do rolezinho e do funk da ostentação, entrevisto Alexandre Barbosa Pereira nesta coluna. Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele dedica-se a pesquisar as manifestações culturais das periferias paulistas. Em seu mestrado, percorreu o mundo da pichação. No doutorado, mergulhou nas escolas públicas para compreender o que é “zoar”. Desde 2012, pesquisa o funk da ostentação. Mesmo que os rolezinhos, pela força da repressão, se encerrem neste Natal, há muito que precisamos compreender sobre o que dizem seus protagonistas – e sobre o que a reação violenta contra eles diz da sociedade brasileira
O rolezinho aparece ligado ao funk da ostentação. Em que medida há, de fato, essa ligação?
Alexandre Barbosa Pereira – O funk ostentação é uma releitura paulista do funk carioca, feita a partir da Baixada Santista e da Região Metropolitana de São Paulo, na qual as letras passam a ter a seguinte temática: dinheiro, grifes, carros, bebidas e mulheres. Não se fala mais diretamente de crime, drogas ou sexo. Os funkeiros dessa vertente começaram a produzir videoclipes inspirados na estética dos videocliples do gangsta rap estadunidense. Mas o mais curioso desse movimento é a virada que os jovens fazem ao mudar a pauta que, até então, era principalmente a criminalidade para o consumo. As músicas deixam de falar de crime para falar de produtos que eles querem consumir. Assim, ao invés de cantarem: “Rouba moto, rouba carro, bandido não anda à pé” (Bonde Sinistro), os funkeiros da vertente ostentação cantam: “Vida é ter um Hyundai e um hornet, dez mil para gastar, rolex, juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ah como é bom ser o top do momento” (MC Danado). Deste modo, os MCs começaram a ter mais espaços para cantar em casas noturnas e passaram a produzir videoclipes cada vez mais elaborados, com mais de 20 milhões de acessos no YouTube, o que levou a um sucesso às margens da mídia tradicional. Alguns MCs chegaram a alcançar grande repercussão entre um segmento do público jovem, sem nunca ter aparecido na televisão. Vi meninas chorando por MCs em bailes, mesmo antes de o funk ostentação alcançar o destaque que conseguiu na grande mídia. Surgiram empresas especializadas na produção de clipes no estilo ostentação, como a Kondzilla e a Funk TV, claramente inspirados no gangsta rap, em que os jovens aparecem em carrões e motos, exibindo-se com roupas, dinheiro e mulheres. Uma reflexão interessante a se fazer é como a mídia tradicional, que antes execrava o chamado funk proibidão, que falava de crime, drogas e sexo abertamente, agora começa a elogiar o funk ostentação, denominando-o até como “funk do bem” e ressaltando a trajetória econômica e social ascendente dos MCs.
Pergunta. Fazendo um parêntese aqui, antes de chegar ao rolezinho, qual é o caminho para um jovem pobre ter acesso ao consumo de luxo, segundo o olhar do funk da ostentação? Esta virada que você mencionou...
Resposta. Primeiro que esse bem de luxo não é tão de luxo assim, afinal uma garrafa de uísque a 60 ou 80 Reais não é nenhum absurdo. É sempre possível comprar uma réplica daqueles óculos escuros que custam mais de mil reais. Nas casas noturnas de funk que observei, este era o preço. Pensemos num grupo de pelo menos quatro amigos dividindo o valor da compra. Não sai tão caro brincar de ostentar. Agora, tem os carros. Estes sim estão fora do alcance da maioria desses jovens. Mas aí há uma explicação interessante, que Montanha, um produtor e diretor de videoclipes da Funk TV, em Cidade Tiradentes, sabiamente me deu. Ele me disse que as novelas já vendiam uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de luxo. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem como um mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros, mansões, roupas de marcas mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou Montanha, ver-se como parte de um mundo de prestígio, daí a grande identificação. O crime pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo ou o que esses jovens entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta é a lição que muitos MCs de funk têm tentando passar em suas falas na grande mídia. Eles de certa forma mostram um outro caminho, que, aliás, sempre esteve presente para esses jovens da periferia: tornar-se famoso pela música ou pelo futebol. Aliás, esses são caminhos que aparecem como os mais possíveis para os jovens negros e pobres das periferias do país imaginarem um futuro de sucesso. Num mundo em que há uma forte divisão entre trabalho intelectual e manual, com a extrema valorização do primeiro, o uso do corpo em formas lúdicas como meio de ganhar dinheiro mostra-se como opção para uma transformação da vida. “Crime, futebol, música, caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o Negro Drama cantado pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão tentando dizer que é possível construir uma vida de sucesso pela música. E o que era ficção, os videoclipes com carros importados emprestados ou alugados, com dinheiro cenográfico jogado para o ar, começa a tornar-se realidade. Muitos deles começam a ganhar uma quantidade razoável de dinheiro com os shows. Acho que a ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.

Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo.”

Por outro lado, é preciso destacar que masculinidades pautadas pelo desejo de possuir um automóvel ou uma motocicleta não foram construídas pelo funk ostentação. Já existia há um tempo. Para os meninos da periferia, possuir um bom carro, bonito e potente, é uma das metas principais de vida. A posse do carro é, no imaginário desses jovens, mas também da população em geral, um indicativo de sucesso econômico e social, garantindo, consequentemente, sucesso com as mulheres.
Neste caldo cultural, o consumo é cada vez mais exaltado como espaço de afirmação e de reconhecimento para os jovens. É, inclusive, bastante complexa a forma como se dá a relação entre criminalidade e consumo no funk. Na virada que produziram, parece que há o recado de que essas duas ações sociais podem constituir dois lados de uma mesma moeda. Eles não deixam de falar do crime. Acabam citando-o indiretamente, como nas músicas do MC Rodofilho, nas quais ele celebra: “Ai meu deus, como é bom ser vida loka!”. O importante é entender como o crime e o consumo são pautas constantes nas relações de sociabilidade dos jovens da periferia. Os mais pobres também querem que ipads, iphones e automóveis potentes façam parte de seu mundo social. Ainda preciso observar e refletir mais sobre isso, mas acho que tanto no caso do crime, como no do consumo temos que atentar mais para o modo como se dão as relações entre pessoas e coisas. Fico pensando que a busca de realização apenas pelo consumo envolve sentimentos e posturas extremas de um egoísmo hedonista e de um profundo desprezo pelos outros humanos. As mercadorias, ou as coisas almejadas, de certa forma têm conformado as subjetividades contemporâneas. E nessas novas subjetividades, pautadas pelo instantâneo e o instável, parece não haver muito espaço para a solidariedade. Há uma nova tendência na discussão antropológica afirmando que não podemos entender as coisas apenas como representação ou resultado do social. Precisamos pensar também em como as coisas fazem as pessoas e mesmo o social, como as coisas, ou as mercadorias mais desejadas hoje, motivam tanto um consumismo desenfreado, irracional e egoísta, quanto o ingresso de jovens na criminalidade. Sempre fico espantado quando vejo as imagens, em outros países, das pessoas correndo desesperadas para comprar um novo lançamento de smartphone, videogame ou tablet... Mas não só isso, tais coisas também motivam e determinam formas de estar, pensar, relacionar-se e sentir no mundo contemporâneo.
Penso muito nisso quando parte da classe média critica o consumo desses jovens, dizendo que apenas eles – da classe média que, supostamente, pagaria os impostos – têm direito a consumir, ou se relacionar com certos produtos. Será que, desse modo, a classe média entende que os jovens estão roubando o direito exclusivo de eles consumirem ou de se relacionarem com esses objetos de prestígio? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo?
Essa crítica pode vir inclusive de certa classe média mais intelectualizada e mesmo com ideias políticas progressistas, mas que acha que sabe o que é melhor para os pobres. Aí fazem a crítica, a partir dos seus ipads e iphones, ao que entendem como um consumo irracional dos mais pobres, que deveriam poupar ao invés de gastar com produtos que não seriam para o nível econômico deles. Enfim, tem aí um jogo de perde e ganha e também de busca de satisfações individuais que envolve o roubo do direito de alguns ao consumo, que é preciso aprofundar para entendermos melhor essas dinâmicas contemporâneas. Todos têm o direito a consumir o que quiserem hoje? E seria viável, hoje, todos consumirem em um alto padrão? Que implicações ambientais teríamos? E se não é sustentável ou viável que todos consumam em tamanha intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso, o que quero dizer é que não se pode pensar a relação entre crime e consumo apenas entre os pobres, mas creio que precisamos também olhar para as classes médias e altas e para os crimes que, historicamente, têm sido cometidos contra os mais pobres e o meio ambiente para proteger o consumo dos ricos.
P. É neste ponto que os rolezinhos aparecem e criam uma tensão das mais reveladoras neste Natal?
R. Os rolezinhos nos shoppings estão ligados diretamente a esse contexto. Não sei dizer como surgiram efetivamente, mas me parece que despontaram por essas novas associações que as redes sociais permitem fazer, de forma que uma brincadeira possa virar algo sério. De repente, uma convocatória feita na internet pode levar centenas de jovens a se encontrarem num shopping, local onde podem ter acesso a esses bens cantados nas músicas, ainda que apenas por acesso visual. Agora, o que é importante ressaltar é que não foram os rolezinhos nem o funk ostentação que criaram essa relação de fascinação com consumo. Esta já existia há muito tempo. Os Racionais, há mais de dez anos, já cantavam sobre isso, com afirmações como: “Você disse que era bom e a favela ouviu, lá também tem uísque, red bull, tênis nike e fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”

É importante perceber que os shoppings onde os rolezinhos ocorreram estão em regiões mais periféricas. Eles não têm ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade.”

P. Algumas análises relacionam os rolezinhos a uma ação afirmativa da juventude negra e pobre, a uma denúncia da opressão e a uma reivindicação de participação, neste caso no mundo do consumo. Como você analisaria este fenômeno tão novo?
R. Não me arriscaria a dizer que há um movimento político muito claro. Pode indiretamente constituir-se como uma ação afirmativa da juventude negra e pobre. Talvez a tensão que se criou com a criminalização desses jovens, durante os rolezinhos, possa levar a algum tipo de reflexão e ação política maior, mas é difícil prever. Em um livro intitulado Cidadania Insurgente, (o antropólogo americano) James Holston analisa o surgimento das periferias urbanas no Brasil, particularmente em São Paulo, apontando a discriminação contra certas espécies de cidadãos no Brasil. Esse autor mostra como, historicamente, as formulações de cidadania elaboradas pelos mais pobres se deram a partir de sua ocupação dos bairros nas periferias das grandes cidades. Noções e práticas próprias de cidadania que se produziram, ao mesmo tempo, por meio das experiências de tornar-se proprietário, de participar de movimentos sociais por melhorias dos bairros e de ingressar no mercado consumidor. Primeiro se ocupou os bairros, mesmo sem estrutura mínima. Depois, ocorreram as reivindicações pela legalização dos terrenos ocupados. E, enfim, vieram as lutas pela chegada da energia elétrica, saneamento básico e asfalto. Acho sempre muito interessante, em conversas com lideranças antigas dos bairros periféricos de São Paulo, observar que elas indicam a chegada do asfalto como o grande marco de transformação do bairro e a integração deste ao espaço urbano.
Encaro, portanto, ações como estas, dos rolezinhos, do ponto de vista dessa “cidadania insurgente”, referindo-se a associações de cidadãos que reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande discurso hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao menos provocam ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania, participação política e direitos que, historicamente, foi feita na marra, pelos mais pobres, muitas vezes nas costuras entre o legal e o ilegal, e que começou com a própria ocupação dos bairros na periferia da cidade de São Paulo, como forma de habitar e sobreviver no mundo urbano. Essa cidadania não necessariamente se apresenta como resistência, mas pode também querer, em muitos casos, associar-se ao hegemônico, produzindo dissonâncias.
O que são o funk ostentação e os rolezinhos se não essa reivindicação dos jovens mais pobres por maior participação na vida social mais ampla pelo consumo? Estas ações culturais parecem situar-se nessa lógica, que não necessariamente se contrapõe ao hegemônico, na medida em que tenta se afirmar pelo consumo, mas provoca um desconforto, um ruído extremamente irritante para aqueles que se pautam por um discurso e uma prática de segregação dos que consideram como seus “outros”.
P. Como definir este desconforto? O que são os “outros” neste contexto? E que papel estes “outros” desempenham?
R. O desconforto em ver pobres ocupando um lugar em que não deveriam estar, como o de consumidores de certos produtos que deveriam ser mais exclusivos. É um tipo de espanto, que indaga: “Como eles, que não têm dinheiro, querem consumir produtos que não são para a posição social e econômica deles?”. Estes “outros” são os considerados “subalternos”. Podem ser funkeiros, pobres e pardos da periferia, mas podem ser também as empregadas domésticas, os motoboys, os pichadores, entre outros “outros”, que muitas vezes são utilizados como bode expiatório das frustrações de uma parcela considerável da classe média.

Há uma tendência de perceber os jovens pobres a partir de três perspectivas: a do bandido, a da vítima e a do herói.”

Os rolezinhos não são protestos contra o shopping ou o consumo, mas afirmações de: “Queremos estar no mundo do consumo, nos templos do consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros periféricos, negros e pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical considerado marginal, eles passam a ser vistos e classificados pela maioria dos segmentos da sociedade como bandidos ou marginais. Vamos pensar que, na própria concepção do shopping, não está prevista a presença desse público, ainda mais em grupo e fazendo barulho. Pergunto-me se fosse em um shopping mais nobre, com jovens brancos de classe média alta, vestidos como se espera que um jovem deste estrato social se vista, se a repercussão seria a mesma, se a criminalização seria a mesma. Talvez fosse considerado apenas um flash mob. Há uma tendência, por parcela considerável da classe média, da mídia e do poder público de perceber os jovens pobres a partir de três perspectivas, quase sempre exclusivistas: a do bandido, a da vítima e a do herói.
P. Como funcionam estas três perspectivas – bandido, vítima e herói?
R.  São muito mais formas de enquadrar esses jovens por aqueles que querem tutelá-los do que categorias assumidas pelos próprios jovens. Por isso, são contextuais. Dependendo da situação e dos atores sociais com quem dialogam, o jovem pode ser entendido a partir de uma dessas categorias. O pichador, por exemplo, é um agente que pode mobilizar todas essas classificações, dependendo do contexto e dos interlocutores: a polícia, a secretaria de cultura, os pesquisadores acadêmicos ou a ONG que quer salvar os jovens da periferia da violência. No caso do funk, por exemplo, já há comentários e mesmo textos de pessoas mais politizadas vendo os rolezinhos como uma ação afirmativa ou extremamente contestatória. Para estes, os protagonistas dos rolezinhos são vítimas que se tornaram heróis. Outros, como a polícia, a administração dos shoppings e a clientela, mas também seus vizinhos, que moram lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles principalmente vilões e mesmo bandidos.
Jovens como estes que estão nos rolezinhos não necessariamente aceitam se encaixar nesses rótulos, mas, em alguns casos, podem também se encaixar em todos eles ao mesmo tempo. Não se pode simplificar um fenômeno como este. Porém, se pensarmos esse movimento que surge principalmente com o hip hop, de valorizar a periferia como espaço político e de afirmação positiva, é possível ver, sim, ainda que em menor intensidade, uma certa ação política. De dizer: “Somos da quebrada e temos orgulho disso”. Um movimento de reversão do estigma em marca positiva.
P. Mas há, de fato, uma ação consciente, organizada, com um sentido político prévio? Ou o sentido está sendo construído a partir dos acontecimentos, o que é igualmente legítimo?
R. Olha, sinceramente, é difícil dizer se há um sentido político, direto, consciente e/ou explícito. Talvez por parte de alguns, mas pelo que vi nas redes sociais, não da maioria. Se o movimento persistir ou tomar outras formas, pode ser que tal sentido político fique mais forte. Por enquanto é difícil analisar esse ponto. O antropólogo (indiano) Arjun Appadurai analisa há algum tempo as mudanças que se processam no mundo por causa do avanço das tecnologias de comunicação e de transporte. Segundo este autor, as pessoas cada vez mais se deslocam no mundo atual, e não apenas fisicamente, mas também e talvez principalmente pela imaginação, por causa de meios de comunicação como a televisão e, mais recentemente, pela internet. Hoje é possível imaginar-se nos mais diferentes lugares do mundo, mas também em diferentes classes sociais. O que são os videoclipes de funk da ostentação que não imagens/imaginações que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social ou possuir melhores condições econômicas para o consumo?

O que são os videoclipes de funk ostentação que não imagens que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social?”

Essa imaginação, segundo esse autor, pode constituir-se como um projeto político compartilhado, mas pode também ser apenas uma fantasia, como algo individualista e egoísta, sem grandes potenciais políticos. Parece-me que o funk da ostentação em São Paulo e movimentos como o dos rolezinhos nos shoppings têm intensamente essas duas potências. Difícil saber se alguma delas irá prevalecer ou tornar-se hegemônica.
P. A escolha da música do MC Daleste, assassinado num show em Campinas, para o rolezinho promovido no Shopping Internacional de Guarulhos, pode ter um significado a mais?
R. A escolha da música do MC Daleste na entrada dos jovens no shopping de Guarulhos me pareceu bastante significativa, por vários motivos. Principalmente, porque a morte dele no palco, cantando funk, de certa forma construiu um marco para esse funk da ostentação. O seu assassinato acabou por dar ainda mais visibilidade a esta vertente do funk paulista. MC Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa relação confusa entre crime e consumo manifesta-se de modo bastante forte no que o MC Daleste representa. Há no seu próprio nome artístico essa afirmação de um certo orgulho do lugar de onde vem e de ser da periferia, que tanto o funk quanto o hip hop expressam. Não é por acaso que ele é “Da Leste”. Lembremos que Guarulhos também está à leste da Região Metropolitana de São Paulo.
P. Hoje, uma parte significativa da geração que se criou nas periferias com movimentos contestatórios como o hip hop e a literatura periférica ou marginal tem, pelo funk da ostentação, assumido os valores de consumo das classes médias e alta. Como você analisa este fenômeno e o insere no contexto histórico atual do Brasil?
R. O que um evento como esse parece evidenciar é, por um lado, esse anseio por consumir e por afirmar-se pelo consumo que esses jovens vêm demonstrando já há algum tempo, pelas letras dos funks, mas que também já é visto no hip hop. Apesar das críticas de certos segmentos do hip hop, não sei se o funk ostentação rompe com o hip hop mais politizado dos anos 1980 e 1990 ou se oferece uma das muitas possíveis continuidades a esse movimento cultural. Parece-me que o funk ostentação é uma releitura paulista, muito influenciada pelo hip hop, do funk carioca. Muitos MCs de funk eram MCs de hip hop, muitos deles, além dos funks, cantam também raps, e músicas dos Racionais são ouvidas nos shows. Trechos de letras de músicas dos Racionais podem ser encontrados facilmente nas letras do funk. Agora, o fato é que o funk não é tão marcado pela questão política como o hip hop. O Montanha, de Cidade Tiradentes, disse-me algo interessante, certa vez, de que, na verdade, o hip hop ofereceria um espaço de expressão política que faltava aos jovens, já o funk é um espaço de lazer e de sociabilidade. Parece-me uma reflexão interessante. Não que o hip hop não possa conter lazer e sociabilidade também, nem o funk, protesto político, mas que as duas vertentes tendem para um dos polos. O funk, aliás, ganhou esse grande espaço junto aos jovens das periferias de São Paulo porque, nessa articulação de um espaço de lazer, configurou-se um espaço para as mulheres que, no hip hop, era mais difícil. As mulheres são presença fundamental nos bailes funks. O protagonismo da dança sempre foi delas. Ainda que os meninos também dancem e as meninas participem cada vez mais como MCs. O hip hop sempre foi muito mais masculino, da dança ao estilo de se vestir.
P. Mas qual é a diferença, na sua opinião, entre a forma como, por exemplo, os Racionais falam em consumo e os MCs da ostentação falam de consumo?

Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais fomentadas na contemporaneidade que se pautam cada vez mais pela busca do reconhecimento pelo consumo, pela posse de bens.”

R. Há aí duas perspectivas. Quando digo que os Racionais já cantavam isso, quero dizer que eles já identificavam essa necessidade de consumir da juventude. E de consumir o que eles achavam que era bom, nada de consumo consciente. Por isso digo que os Racionais já faziam, há mais de dez anos, uma leitura desse anseio por consumir dos jovens pobres. Por outro lado, há essa dimensão de movimentos como o dos escritores da periferia, promovendo produtos da periferia, pela periferia. O funk ostentação começa sem se preocupar com essa questão diretamente. Ele não tem dor na consciência por cantar o consumo em suas músicas e aderir ao sistema, por exemplo. Porém, indiretamente, se acaba chegando a um outro ponto, na medida em que uma parcela considerável de jovens da periferia passa a possuir algum tipo de renda com a produção do funk. Sejam os meninos que gravam os videoclipes, os próprios MCs, mas também empresários, produtores, técnicos e mesmo alguns MCs tornando-se empreendedores e criando seus próprios negócios. Como o MC Nego Blue, que observando de perto o sucesso das roupas de grife entre os jovens, criou a Black Blue, uma loja de roupas cujo símbolo é uma carpa colorida. Hoje, além de possuir lojas próprias, já vende suas roupas em lojas multimarcas, ao lado de camisas da Lacoste ou de outras marcas famosas que os meninos procuram, e por um preço muito parecido. Uma das empresas que agencia shows de funk em Cidade Tiradentes chama-se justamente “Nóis por nóis”.
Os rolezinhos parecem dizer: não apenas queremos consumir, mas queremos ocupar em massa e se divertir aí nos seus shoppings, nos seus ou nos nossos. É importante perceber também que os shoppings onde os eventos ocorreram estão em regiões mais periféricas, provavelmente próximos ao próprio bairro de moradia dos jovens. Por enquanto, eles não têm ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade, na região dos Jardins, Faria Lima, Marginal Pinheiros etc. Pode haver aí também um componente de um termo que surgiu muito forte para mim na pesquisa que fiz em escolas de ensino médio, no meu doutorado, que é a ideia do “zoar”. Eles querem zoar, que é chamar a atenção para si e se divertir, namorar, brincar e, se for preciso, brigar.
P. Por que, neste momento, o lazer se impõe como uma reivindicação desta geração, acima de questões como saúde, educação e transporte de qualidade?
R. Acho que não há uma reivindicação política bem formuladinha como acontecia com o hip hop: queremos mais saúde, educação e lazer. Eles simplesmente querem estar nos shoppings para zoar e vão. Não há essa reflexão mais elaborada que o hip hop produz, é mais espontâneo. Esse talvez possa ser um ponto de distinção. E o próprio funk é, por si só, lazer e diversão, um dispositivo poderosíssimo para dançar e motivar paqueras. O zoar pode ser lido como um ato político, mas não me parece intencional. Acho que cria uma tensão que é política, que é de disputa de poder pelos espaços da cidade, mas não há um manifesto pela zoeira ou pelos rolezinhos, como houve, por exemplo, no caso do manifesto da arte periférica dos escritores.
P. Há também um movimento maior para sair dos guetos e ocupar os guetos da classe média? Em massa e não mais individualmente, como quando um grupo de rap aparecia numa TV, mesmo sendo a MTV, ou um escritor do movimento literário marginal ou periférico publicava numa grande editora? Esta é uma novidade importante?
R. Acho que abre, sim, para fora do gueto, do bairro onde se vive, mas não para muito longe, pois, afinal, os shoppings para os quais eles vão estão do lado de suas casas. Neste sentido, acho que o hip hop, apesar de falar mais do gueto, abre-se muito mais para fora do gueto, na medida em que conquista um espaço importante nas políticas públicas de cultura, por exemplo.

É como se a sociedade dissesse: ‘Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar funk, aí já é vandalismo’.”

Claro que esse espaço de lazer é problemático e conflitivo mesmo dentro dos bairros das periferias onde moram esses jovens. Se entrevistarmos os seus vizinhos, certamente a maioria vai se posicionar totalmente favorável à proibição das festas de rua que eles organizam, com som alto que muitas vezes toma a madrugada toda. Por isso, acho importante não tomar o funk nem como um movimento libertador, nem como o grande vilão ou o grande movimento de corrupção da juventude contemporânea, como setores mais moralistas, à esquerda e à direita, tendem a fazer.
A questão do consumo também me parece problemática. O desejo pelo consumo sempre existiu. Bem antes do governo Lula, o processo de urbanização induz a esse apego maior ao consumo. Porém, não dá para se negar que houve, nos últimos anos, também uma melhora econômica para segmentos que antes estavam bastante afastados do mercado. Porém, acho que reduzir o sucesso do funk da ostentação a isso é simplificar demais o movimento e esquecer que ocorreram e ocorrem movimentos juvenis parecidos em outras partes do mundo, como o próprio gangsta rap, nos Estados Unidos, no qual os videoclipes se inspiram.
Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais fomentadas na contemporaneidade. É preciso conceder aos jovens, e não apenas aos pobres, mas aos de classe média e alta também, outros espaços de reconhecimento e de estabelecimento de relações sociais que não sejam pautados pela afirmação por meio da posse e do consumo de bens. Porque, afinal, como dizem os Racionais, mais uma vez: “Quem não quer brilhar, quem não? Mostra quem. Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém”. De repente, para alguns, ter um tênis caro, um smartphone de última geração ou ir ao shopping para zoar, pode ser uma forma encontrada para tentar brilhar.
P. Ao ocupar os shoppings, os adeptos do funk da ostentação estariam promovendo sua primeira atitude de insurgência contra o sistema, no sentido de: “Vou ocupar o espaço que me é negado ou onde não me querem”. É isso? Ou as próprias letras das músicas, interpretadas, em geral, como adesão ao sistema, já seriam, de fato, uma insurgência, na medida que se apropriam, simbolicamente, dos valores da elite e da classe média e, agora, com os rolezinhos, também de seus espaços físicos?
R. Sim, acho que essa é a maior irritação da classe média com esses movimentos. Basta ver os comentários aos videoclipes no YouTube, irritados com os meninos ostentando e exibindo-se com produtos mais caros, que não deveriam estar com aqueles meninos, pobre e negros, em sua maioria. Esta é a principal insurgência que eles provocam. A classe média, de uma maneira geral, a mais pobre ou a mais rica, a mais ou menos intelectualizada, irrita-se bastante quando os subalternos compram bens caros, mesmo antes deles. Já ouvi comentários indignados, do tipo: “Minha empregada comprou uma televisão de última geração, melhor do que a minha”. Isso tem antecedentes históricos que parecem refletir até hoje. James Holston, ainda no livro sobre cidadania insurgente, que citei anteriormente, traz como exemplo a legislação colonial portuguesa, que proibia aos negros o uso de joias e artigos considerados finos...
P. Parece que os “rolezeiros” dos shoppings estão ocupando o mesmo lugar simbólico dos “vândalos” nas manifestações, na narrativa feita por parte da grande mídia e pelas autoridades instituídas. Como você interpreta essa reação?

Os comentários em sites e redes sociais revelam esse profundo racismo entranhado em parcela considerável da população brasileira.”

R. O que me assustou de verdade nessa história toda foram as reações, de mídia e de polícia, condenando e mandando prender, mesmo em casos em que disseram que não houve arrastões, mas correrias. Fico questionando quem provocou a correria: os jovens ou a ação dos seguranças e da polícia? Eventos como estes revelam também uma faceta complicada e extremamente preconceituosa da classe média brasileira. Dei uma entrevista curta para o site de um grande grupo de comunicação e fiquei assustado ao ler os comentários dos leitores, de um ódio terrível contras os meninos e meninas que foram aos shoppings, contra os pobres, contra mim, que tive uma fala dissonante na entrevista, ressaltando a forma preconceituosa com que tal tema vinha sendo tratado. Ao falarem do evento, algumas palavras utilizadas como categorias de acusação contra os jovens e as jovens foram bastante reveladoras do preconceito, e mesmo do racismo, deste segmento social: “favelados”, “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Nesse último caso, inclusive, fica evidente o racismo que aparece em muitos comentários dessa notícia, mas também nas comunidades dos rolezinhos que os jovens criaram nas redes sociais. Um dos comentários pede para que os jovens voltem para a África. Isso é muito grave. Revela esse profundo racismo entranhado em parcela considerável da população. Como se tal sociedade dissesse, por meio dos representantes dos shoppings, da mídia e da polícia, brincando um pouco com a questão das manifestações de junho: “Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar funk, aí já é vandalismo”.
P. A classe média é racista?
R. O que chamamos de classe média não é um todo homogêneo. É possível segmentá-la em diferentes níveis e a partir de diferentes contextos, é possível pensar em uma classe média intelectualizada ou não intelectualizada. Contudo, parece-me que a divisão mais importante para se pensar a classe média em São Paulo é a que se dá por critérios socioeconômicos e espaciais. Há a classe média que está concentrada principalmente no entorno do eixo central, que vai do Centro a Pinheiros, passando pela Avenida Paulista e bairros próximos. Esta, em sua maioria, vive numa bolha e tem poucos contatos com outras classes sociais, com exceção dos trabalhadores subalternos: porteiros, empregadas domésticas etc. Para esta, em grande medida, o Shopping Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.
Porém, há também certa classe média baixa que vive na periferia. Citando novamente o Holston, ele fala de uma diferenciação que se produziu nas periferias de São Paulo entre aqueles que compraram seus terrenos, ainda que por meio de contratos obscuros, e aqueles que ocuparam os espaços da cidade, formando as favelas. Essa pequena diferença não cria um grande abismo econômico, mas produz uma profunda diferenciação, por meio do qual um grupo estigmatiza o outro. Já vi um indivíduo desta classe média da periferia questionando programas como o bolsa família, porque tinha visto potes vazios de iogurte no lixo da favela. Este indivíduo afirmava que nem ele consumia iogurte com tanta frequência, como eles se davam ao direito de consumir tal produto, que era um luxo, raro, mas sobre o qual ele detinha certa exclusividade?
A questão do auxílio aos mais pobres, principalmente o bolsa família, é um forte fator de estigmatização por parte desses diferentes segmentos da classe média, mas principalmente por parte dessa classe média da periferia. Estive, recentemente, em uma escola pública próxima a uma grande favela de São Paulo. Segundo os professores, um dos problemas daquela escola era o fato de que 90% dos alunos vinham da favela vizinha. E que, hoje, esses alunos estavam muito acomodados, pois viviam de bolsas e na favela tinham tudo muito fácil, com a grande quantidade de projetos presentes por lá. Inclusive, projetos de música, ressaltou um professor. É muito importante refletir sobre isso, porque esses professores, se não moram na favela, são vizinhos dela. Mas, ainda assim, permitem-se diferenciar-se dos jovens por questões muito pequenas. E são estes professores os responsáveis por formar esses jovens. Será que, com este olhar, são capazes de lutar para que a escola se torne um espaço de convivência, afirmação e reconhecimento para os jovens?
P. Como você, que tem acompanhado o cotidiano de escolas públicas, em São Paulo, percebe a educação?

Para uma parcela da classe média de São Paulo, o Shopping Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.”

R. É necessário pensarmos em uma educação para as diferenças, para que não caiamos mais na armadilha da intolerância e das análises apressadas e preconceituosas de setores das elites e das camadas médias, ao se referirem aos “subalternos”. Lembro-me de um documentário português, que vale a pena ser assistido, sobre a história de um arrastão que não existiu. Chama-se: “Era uma vez um arrastão” (assistaaqui). Nele, conta-se do dia em que jovens caboverdianos ou descendentes de caboverdianos resolveram frequentar a nobre praia de Carcavelos, em Portugal. A polícia, ao ver a concentração de jovens de origem africana, assustou-se e resolveu intervir, provocando uma grande correria, que foi noticiada como arrastão. Mas, de fato, os jovens fugiam da repressão policial gratuita. Isso talvez nos ensine algo sobre os arrastões que estamos a criar todo dia, criminalizando jovens pobres cotidianamente.
Quando estive pesquisando em escolas públicas da periferia de São Paulo, era comum ouvir dos professores que, naquela escola, os alunos eram todos bandidos ou marginais. O discurso da criminalização é efetivo e poderoso e condena muita gente ao fracasso escolar e mesmo ao crime. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, num livro sobre educação e juventude, ressalta a necessidade cada vez mais premente, na contemporaneidade, de desenvolvermos a arte de conviver com os estranhos e a diferença. Em especial num mundo no qual as migrações tendem a aumentar cada vez mais. No nosso caso, não foi preciso a chegada de estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os estrangeiros éramos nós, os brasileiros. Mas brasileiros que moram muito, muito distante, ainda que vizinhos. Moram em Guaianazes, Capão Redondo, Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...
P. Em que medida, na sua opinião, os rolezinhos se ligam às manifestações de junho?
R. Acho que não há uma ligação direta. Mas, indiretamente, é possível perceber a reivindicação comum do uso do espaço público e de quebra das marcas da segregação. Lembro-me que, antes das manifestações de junho, para a imprensa conservadora era um tabu ocupar a Avenida Paulista. Os movimentos sociais mostraram que não apenas não era um tabu, como era um direito, o direito de ir às ruas e ocupá-las para protestar. Os rolezinhos não parecem ter uma pauta tão clara, mas também estão, ainda que indiretamente, dizendo: “Vocês não disseram que era bom consumir? Pois bem, nós também queremos!”
P. Essa ocupação de espaços que supostamente pertenceriam a “outros”, tanto no caso das manifestações como no caso dos rolezinhos, parece marcar uma novidade importante. O que está acontecendo?
R.  Acho que a novidade está aí, mas é difícil dizer o que está acontecendo ou o que acontecerá. Pode ser apenas um surto – algo parecido com o que foi a revolta da vacina como reação às propostas políticas opressoras de reforma sanitária do Rio de Janeiro, por exemplo – ou pode ser uma nova forma de pensar os espaços públicos e privados nas cidades brasileiras. Porém, é difícil prever. Os rolezinhos podem ter acabado nesta semana, por exemplo. E movimentos como os de junho não se repetiram com tanta intensidade e repercussão. Contudo, o que movimentos como estes garantem é a possibilidade de se tensionar essa ocupação dos espaços urbanos, amplamente negada até então.

Aqui não foi preciso a chegada de estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os estrangeiros éramos nós, os brasileiros que moram em Guaianazes, Capão Redondo, Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...”

P. Por que este nome, rolezinho? E que significados ele contém?
R. Rolezinho é um termo que está diretamente ligado à ideia de lazer. De sair para se divertir e usufruir da cidade. Os pichadores, com os quais realizei pesquisa no mestrado, também usam a ideia de rolê, para se referirem às suas pichações. Com isso estão dizendo que pichar é dar voltas para conhecer e se apropriar da cidade. Parece que, por este termo, indiretamente, podemos entender uma reivindicação pelo direito de se divertir na cidade.
P. Divertir-se na cidade não seria um ato de insubordinação para jovens pobres e negros? Talvez até o maior ato de insubordinação?
R. Sim, principalmente numa sociedade em que pobres e negros têm que trabalhar – e apenas trabalhar – sem reclamar. Lembremos de que a ROTA, no final do regime militar, atuava nas periferias abordando os moradores e cobrando-lhes a carteira profissional como prova de que eram trabalhadores e não vagabundos. Devotados, portanto, ao trabalho e não à diversão. Agora, claro que esses jovens não estão pensando exatamente nisso. Querem muito mais é se divertir.
P. Como entender este fenômeno, que é, ao mesmo tempo, uma insubordinação e uma adesão ao sistema?
R.  Acho que a melhor palavra é paradoxo. O funk da ostentação em São Paulo é paradoxal: não dá para situá-lo num polo ou noutro, dentro do modo tradicional de pensar a política. Conservador ou revolucionário? Nenhum dos dois, mas com possibilidade para os dois ao mesmo tempo.


Eliane Brum / Kaique e os rolezinhos: o lugar de cada um

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Kaique Augusto Batista dos Santos


Kaique e os rolezinhos: o lugar de cada um


A lógica que criminalizou os rolezinhos é a mesma que levou a polícia a registrar a morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos como suicídio, antes de qualquer investigação



ELIANE BRUM
20 JAN 2014 - 07:03 COT




A morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos e os rolezinhos não coincidem apenas no calendário. Dizem de um lugar: onde é “natural” encontrar um jovem negro e pobre, onde não é “natural” encontrá-lo. A lógica que determina a criminalização prévia dos rolezinhos e a não criminalização prévia da morte de Kaique – acontecimentos que moveram São Paulo e parte do país nos últimos dias – é a mesma. Ela indaga por territórios e revela leis não escritas.
Primeiro, quem é Kaique, já que sobre os rolezinhos estamos bem mais informados. O adolescente foi encontrado morto no sábado (11/1), próximo a um viaduto da Avenida Nove de Julho, na região central de São Paulo. Os dentes e os dedos estavam quebrados, havia um ferimento numa perna. Para a família, uma barra atravessada, que depois teria sido retirada. Para policiais, uma fratura exposta. Tinha 16 anos – e são os jovens os que mais morrem por assassinato no Brasil. Era homossexual – as mortes por homofobia cresceram 11% em 2012, comparado ao ano anterior. Era negro, como mais de 70% das vítimas de homicídio no país. É razoável esperar que suas circunstâncias, assim como as circunstâncias em que seu corpo foi encontrado, motivassem suspeitas de que pudesse ter sido assassinado. Não foi, porém, o que aconteceu. A polícia de São Paulo registrou no boletim de ocorrência: “suicídio”.
Não há, neste momento, como afirmar se Kaique foi assassinado ou se suicidou. Para afirmar, tanto um homicídio quanto um suicídio, é preciso uma investigação. E séria. Há suicídios que, pelas circunstâncias e pelas evidências, são facilmente comprováveis. Não parece ser o caso de Kaique. A questão que se impõe é: por que foi registrada como suicídio uma morte que até hoje, mais de uma semana depois, não foi esclarecida?
Na sexta-feira (17/1), centenas de pessoas fizeram um ato contra a homofobia, no centro de São Paulo, exigindo esclarecimentos sobre a morte de Kaique. Entre os cartazes, um referia-se à manutenção, sem qualquer alteração, do papel da polícia da ditadura civil-militar na atual democracia: “Desde 64 quem é torturado e assassinado foi suicidado”. A verdade – ou pelo menos parte dela – é que, não fosse a inconformidade da família, a divulgação pela imprensa e, principalmente, a revolta massiva nas redes sociais, a morte de Kaique jamais seria investigada. Ainda que a polícia possa negar que funcione assim, “suicídio”, no boletim de ocorrência, significa, na prática, caso resolvido. Encerrado, portanto, sem investigação.
Pressionada pela família de Kaique e por ativistas da luta contra a homofobia, a polícia paulista segue repetindo que não há indícios de assassinato, como repetia desde o momento em que policiais botaram os olhos no corpo do garoto e concluíram por suicídio. A Secretaria de Direitos Humanos, ligada à presidência da República, enviou para São Paulo o coordenador de Promoção dos Direitos dos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) para acompanhar o caso. Em nota, afirmou: Kaique foi “brutalmente assassinado” e há indicação de que “se trata de mais um crime de ódio e intolerância motivado pela homofobia”.


Pressionada pela família e por ativistas da luta contra a homofobia, a polícia paulista segue repetindo que não há indícios de assassinato

Neste momento, há uma ministra do PT (Maria do Rosário, dos Direitos Humanos) desmentindo a polícia do PSDB em ano de eleição. Nem assim, as provas irrefutáveis que poderiam respaldar o registro de suicídio apareceram. Ainda que, contra as aparências e a crença da maioria, a polícia paulista consiga provar que Kaique se suicidou, a questão crucial dessa história continua rigorosamente a mesma. Não se trata apenas de saber se a morte de Kaique foi assassinato ou suicídio, o que está perto de virar um FlaXFlu político-partidário, mas sim questionar aquilo que já está provado: não havia como saber a causa da morte de Kaique quando a polícia a registrou como “suicídio” no boletim de ocorrência.
E por que o fez?
Há várias hipóteses, inclusive a de reduzir as estatísticas da violência, uma preocupação constante das autoridades, que se acirra em períodos pré-eleitorais. Mas há uma explicação que pode nos ajudar a refletir sobre esse momento agudo que o Brasil vive e que é marcado pelos rolezinhos, o fenômeno mais interessante do momento, pela riqueza (inclusive contraditória) de seus significados.


Do crime, [os negros] não são vítimas, mas autores

É nesta esquina simbólica, na indagação sobre o território de cada um, que o caso Kaique e os rolezinhos se encontram. Ao se deparar com um jovem negro e homossexual morto, o corpo flagelado, perto de um viaduto, a polícia tem, sem qualquer investigação, a convicção de que não houve um crime. Ao encontrar um grupo de jovens da periferia, a maioria negros, bem vivos dentro de um shopping, a polícia tem a certeza de que, sim, é um crime. Se ainda não cometeram furtos, roubos e arrastões, certamente o farão. Do crime, não são vítimas, mas autores.
No primeiro caso, se Kaique foi de fato assassinado, o crime ficaria impune, não fosse a pressão das redes sociais. No segundo caso, puniu-se um crime que não aconteceu, ao se indiciar jovens que não fizeram nada além de zoar. Discriminou-se centenas de outros, que foram coagidos a se retirar de shoppings por conta de sua cor e de sua aparência, e barrou-se a entrada de outras centenas, também por causa de sua cor e de sua aparência. Sem esquecer daqueles que, como é mostrado em vários vídeos, levaram gravatas, chutes, socos e empurrões da polícia por ousar entrar num shopping.
Por quê?
As respostas são muitas e não tenho a menor chance de esgotá-las aqui. Mas há uma que vale a pena refletir com bastante atenção num momento em que oapartheid do Brasil é escancarado pelo fenômeno dos rolezinhos, independentemente do fato de esta ser ou não a intenção dos meninos que os promovem. O que une o caso Kaique e os rolezinhos é não só, mas principalmente, o lugar. A naturalização do lugar de cada um numa sociedade cindida, como continua a ser a brasileira.


Para os rolezeiros, o crime era estar dentro, quando se esperava que continuassem no lado de fora

Debaixo de um viaduto, um jovem negro morto não chama a atenção. Se for possível perceber pelas roupas, cabelo e acessórios que é gay, menos ainda. Não é estranho o suficiente para que a polícia acredite que precise estranhar. É, talvez, onde parte da polícia e parte da sociedade espera – e muitos até torcem, como provam os comentários homofóbicos e racistas que também proliferam na internet – que acabe um adolescente negro e homossexual que saiu de uma balada gay do centro de São Paulo. Para tanto, basta tascar no boletim de ocorrência, já que é preciso dizer alguma coisa: “suicídio”. E despachar o corpo para o Instituto Médico Legal como indigente, já que Kaique teria perdido os documentos e o celular. Vale registrar ainda que, devido à “superlotação do IML”, o corpo ficou “fora da geladeira” por dias, alcançando um estado de deformação que tornou impossível para a mãe dar um velório ao filho morto. Kaique, portanto, estava no lugar naturalizado para adolescentes com a aparência de Kaique.
Já dentro de um shopping, um grupo de jovens pobres e, em sua maioria negros, está fora de lugar para essa mesma polícia e a sociedade que a gesta, evoca e respalda. O deslocamento, por si só, passa a ser interpretado como um crime, na medida em que essa mobilidade é criminalizada por leis não escritas, mas profundamente introjetadas. Tão introjetadas que o aparato de segurança pública e o judiciário são acionados para mantê-los do lado “certo” – o lado de fora. Tão introjetadas que o fato de não existir crime tem sido espantosamente insuficiente para impedir a criminalização de um movimento de meninos e meninas que querem se divertir e dar uns beijos, mas que, ainda que estejam usando grifes, jamais são reconhecidos como “iguais”, como tendo a “aparência certa”, o cartão invisível que garante a entrada pela porta da frente.
Para os rolezeiros, o crime era estar dentro, quando se esperava que continuassem no lado de fora. Para Kaique, não havia suspeita de crime, porque, para uma parcela da polícia e da sociedade que a legitima, ele estava no lugar previsto (embaixo de um viaduto) e na condição prevista (morto). Para Kaique e para os rolezeiros há um lugar naturalizado para a morte, há um lugar naturalizado para a vida.


Vivemos tempos melhores porque, até bem poucos anos atrás (ou talvez meses), o registro da morte de Kaique como suicídio não seria questionado

Simbolicamente, é o mesmo policial que bota “suicídio” no boletim de ocorrência, diante do corpo flagelado de um menino negro, e aquele que,como contou a jornalista Vanessa Barbara na Folha de S. Paulo, repetia no ouvido dos garotos no Shopping de Itaquera: “Vou arrebentar vocês. Vou arrebentar vocês”, e logo desferiu um chute num menino. Ainda que, por estrato social, a maioria dos policiais esteja mais próxima dos rolezeiros do que dos frequentadores habituais dos shoppings, como mostra a brilhante charge de Angeli, na qual um dos garotos, encostados na parede pela polícia durante um rolezinho, olha para trás e diz ao PM: “Pai?!”. Ainda – ou talvez por causa disso.
Nossa polícia é muito doente. Porque nossa sociedade é muito doente. Apodrecemos em praça pública, a maioria, outros em seus bunkers privados. Mas acredito que vivemos tempos melhores porque, até bem poucos anos atrás (ou talvez meses), o registro da morte de Kaique como suicídio não seria questionado. E nunca saberíamos o que houve porque não existiria pressão suficiente para que a polícia fizesse, de fato, uma investigação. Até poucos anos atrás a decisão dos meninos e meninas da periferia de zoar em massa nos shoppings talvez produzisse só repressão, mas não questionamento e reflexão sobre o Brasil. Ainda que os mesmos de sempre tentem desqualificar e reduzir a importância do fenômeno, pelos motivos óbvios, o embate hoje conta com mais narradores e o nível se elevou. Por paradoxal que pareça, acho que melhoramos porque começamos a sentir o quanto cheiramos mal. Antes, o cheiro estava lá, mas não o reconhecíamos como nosso.
O ano de 2014 começou apressado, com ritmo de meio. Me aparece um bom augúrio. Se há alguma esperança, ainda frágil, delicada, de que alcancemos um estágio civilizatório minimamente aceitável, ela está na capacidade de nos espantarmos com o boletim de ocorrência de Kaique e com a reação violenta e discriminatória contra os rolezinhos. Com a não criminalização prévia da morte de um e a criminalização prévia da vida de outros. Há momentos – e este é um deles – que só o espanto salva.

Eliane Brum / Nós, os humanos verdadeiros

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Nós, os humanos verdadeiros

Quem estava nu além do menino negro acorrentado a um poste por justiceiros?


ELIANE BRUM
17 FEV 2014 - 07:27 COT


Precisei escutar o discurso do bem. O que dizem aqueles que acorrentaram um menino negro a um poste com uma trava de bicicleta no Flamengo, no Rio, em 31 de janeiro. Aqueles que cortaram sua orelha, aqueles que arrancaram suas roupas. O que dizem aqueles que defendem os jovens brancos que torturaram o jovem negro. Eu sei que os homens e as mulheres que evocam o direito de acorrentar adolescentes negros em postes, cortar a sua orelha e arrancar suas roupas porque se anunciam como homens e mulheres de bem – e homens e mulheres de bem podem fazer tudo isso – estão ao meu redor. Eu os encontro na padaria, os cumprimento no elevador, agradeço a eles quando me permitem atravessar na faixa de segurança. Eles estão lá ao ligar a TV. Mas o que eles dizem que é preciso escutar?
O discurso do bem cabe em poucas frases. O Estado é omisso. A polícia é desmoralizada. A Justiça é falha. Diante desses fatos, e todos os fatos são sempre inquestionáveis no discurso do bem, acorrentar jovens negros em postes com trava de bicicleta, cortar a sua orelha e arrancar suas roupas é um direito de legítima defesa dos cidadãos de bem. Se quiserem torturar o menino negro, como fizeram, eles podem, assegura o bem. Se quiserem matá-lo, eles podem, também. E alguns o fazem. Meninos negros não são meninos. Não é preciso investigação, não é preciso julgamento, não é preciso lei. Os cidadãos de bem sabem, porque são a lei. Também são a justiça. O menino é um marginalzinho, é também um vagabundo, diz o bem. E bandido bom é bandido morto, garante o bem. Se você não pensa assim, o bem tem um pedido a lhe fazer: faça um favor ao Brasil, adote um bandido. Simples, direto, objetivo. O discurso do bem orgulha-se de ser simples, orgulha-se de só ter certezas. A dúvida atrapalha o bem. E o bem não deve ser perturbado. E como duvidar que acorrentar um menino negro a um poste pelo pescoço, cortar a sua orelha e arrancar suas roupas é o bem?
Encontro uma explicação definitiva no discurso dos justiceiros amplificado nas redes sociais. Quem acorrenta um jovem negro a um poste, corta um pedaço da sua orelha e arranca suas roupas – e quem defende o direito de fazer tudo isso – são os “verdadeiros humanos”. E também os “humanos verdadeiros”.
É uma guerra, descubro, entre humanos verdadeiros e humanos falsos.
Neste ponto, tenho uma dúvida. Talvez eu não seja uma humana verdadeira – ou uma verdadeira humana –, porque além dessa dúvida sobre a veracidade de minha humanidade, eu ainda tenho outra. O que os humanos verdadeiros – ou verdadeiros humanos – viram ao arrancar a roupa do menino negro? O que eles enxergaram ao se deparar com sua nudez? Será que foi por isso que arrancaram suas roupas, para provar que ele não era humano? O que aconteceu quando descobriram que seu corpo era igual ao deles? Ou não era? Será que foi nesse momento que cortaram a sua orelha, para marcá-lo como um humano falso, já que Deus ou a evolução não haviam providenciado essa diferença no corpo? Ou basta a cor, como já disse um pastor evangélico dedicado aos direitos humanos? Que perturbadora pode ter sido a nudez do menino, ao se tornar espelho dos justiceiros e os deixar nus, enquanto batiam nele com seus capacetes.
Quem estava nu nessa cena?
As dúvidas não fazem bem ao bem. Por associação eu concluo que há também os jornalistas falsos e os verdadeiros. Os falsos tenderiam a acreditar que, no jornalismo, uma opinião só pode ser dada com informação, pesquisa e investigação da realidade – ou não é uma opinião para o jornalismo, só um vômito de palavras. Os falsos pensariam que, para falar das ruas, seria preciso ir às ruas. Os falsos mostrariam que, quem mais morre por violência, no Brasil, são os jovens negros e pobres como aquele que foi acorrentado a um poste pelo pescoço. Mostrariam também que as maiores vítimas de violência de todos os tipos estão nas periferias e nas favelas – e não no centro, muito menos nos condomínios fechados. Os falsos se preocupariam em esmiuçar o contexto em que o fato foi produzido, explicar as raízes históricas que fazem com que as maiores vítimas de violência sejam os negros e os pobres, a começar pela abolição da escravatura que não se completou. Os falsos se esforçariam para revelar a complexidade de uma cena que remete à escravidão se repetir mais de 125 anos depois da Lei Áurea. Os falsos buscariam analisar como a violência é uma marca de identidade nacional, presente ao longo da constituição da sociedade brasileira – e que aquele que diz punir, de fato se vinga. Os falsos saberiam que uma imagem não desvenda tudo nem é toda a verdade. Os falsos suspeitariam que defender o linchamento, ainda que de humanos falsos, e abrir espaço para o incitamento ao linchamento em veículos de massa e na grande mídia poderia ser considerado uma irresponsabilidade que desqualifica o jornalismo e reduz a imprensa.


O que os justiceiros viram ao se deparar com a nudez do menino?

Mas esse é o problema dos falsos. Eles acham que a realidade não cabe em meia dúzia de frases repetidas de forma diferente. São falsos e são fracos porque duvidam das verdades absolutas. Os jornalistas verdadeiros não têm dúvida nenhuma, nem mesmo uma bem pequena. O mundo acaba nos limites do seu próprio mundo, mesmo que este seja um condomínio fechado e que nas poucas vezes em que saiam de casa seja em carro blindado, de um lugar protegido por seguranças a outro lugar protegido por seguranças. Os jornalistas verdadeiros conquistaram, porque são verdadeiros, o direito de estabelecer os limites do mundo e de falar apenas a partir dele. A alteridade, assim como o movimento de escutar o outro e experimentar o seu argumento, faz mal ao bem e também ao jornalismo verdadeiro.
Divaguei. E divagações não fazem bem ao bem. A questão maior, a que abarca todas as outras, inclusive a dos jornalistas, é a dos verdadeiros humanos – ou dos humanos verdadeiros. Também conhecidos como cidadãos de bem.
Aqui, exatamente aqui, eu tenho outra dúvida. Essa me perturba mais. Percebo que, se estes são os humanos verdadeiros, os que acorrentam jovens negros a postes com travas de bicicleta, cortam a sua orelha e arrancam suas roupas – assim como os que defendem os cidadãos de bem que fazem tudo isso –, minha tendência é me alinhar aos humanos falsos.


O discurso do ódio serve para nos assegurarmos não só de nossa diferença, mas
principalmente de nossa inocência

A distinção, porém, permaneceria. Com o tempo, eu poderia sucumbir à tentação de considerar que os falsos são os melhores. E, em seguida, talvez ousasse dizer que os falsos, na verdade, são mais humanos do que os outros. E, logo, aqueles que não acorrentam jovens negros em postes, não cortam sua orelha, não arrancam suas roupas – e aqueles que não defendem os cidadãos de bem que fazem tudo isso – seriam os verdadeiros humanos – ou os humanos verdadeiros. E eu me colocaria ao lado deles, como uma apaziguada companheira de manada.
Mas seria fácil demais.
Difícil seria compreender não a diferença, mas a igualdade. Difícil não é me diferenciar, mas me igualar, perceber em que esquinas minha humanidade se encontra com a do menino negro preso ao poste e também com a humanidade dos jovens brancos que acorrentaram o jovem negro ao poste. Para isso, eu preciso perceber que aqueles que arrancaram as roupas do menino ficaram nus, sim, mas também me deixaram nua. Nos deixaram nus. Nós, que não compactuamos com quem acorrenta jovens negros em postes, somos aqueles que estavam na cena, mas não aparecem na imagem. E por isso podem se esconder melhor.
É para isso que também serve o discurso do bem. Ou o discurso do ódio, se preferirem. Para que possamos nos contrapor a ele e nos assegurarmos não só da nossa diferença, mas principalmente da nossa inocência. Para que possamos continuar vivendo na ilusão de que fazemos algo para que meninos negros não sejam acorrentados em postes pelo pescoço. Na ilusão de que fazemos algo para que meninos negros não se tornem, caso alcancem a vida adulta, homens e mulheres que ganham menos que os brancos, que têm menos educação que os brancos, que têm menos saúde que os brancos, que sejam a maioria nas casas sem saneamento. Na ilusão de que fazemos algo para que as mulheres negras não sejam as que mais morrem no parto nem seus filhos os que preenchem as estatísticas de mortalidade infantil. Na ilusão de que fazemos algo para que jovens negros não tenham a entrada banida em shoppings, exceto para trabalhar. O discurso do ódio também serve para que possamos nos contrapor a ele e manter intacta a ilusão de que fazemos algo para que jovens negros não sejam os que morrem mais e mais cedo.


Os justiceiros nos dão a chance de exaurirmos nossa omissão em ruidosa revolta e voltar
esgotados de imagem para o sono dos justos

É preciso encarar nossa nudez nesse espelho em que a imagem, sempre incompleta, mostra apenas o menino negro nu. E abrir mão de uma certa soberba que faz com que, no fundo, acreditemos que somos nós os cidadãos de bem – os civilizados contra os bárbaros. E que dizer isso basta para um sono sem sobressaltos.
A maioria (79%), pelo menos no Rio de Janeiro, segundo pesquisa do Datafolha, é contra acorrentar jovens negros a postes. (O maior índice de aprovação aos justiceiros é encontrado entre os brancos, os mais ricos e os mais escolarizados, e este é um dado importante.) Mas o poste/tronco é apenas a imagem extrema, hiper-real, do que a maioria convive, dia após dia, sem perceber que deveria ser impossível conviver com o fato de que uma parte da população brasileira tem menos tudo, inclusive vida. A abolição incompleta da escravatura está em todas as horas do Brasil. Se não fosse mais conveniente ser cego, enxergaríamos jovens negros presos a postes pelo pescoço o tempo todo. O que a quadrilha de jovens brancos, de classe média, fez ao acorrentar o jovem negro a um poste foi uma interpretação literal da realidade cotidiana. Porque seu pensamento é simplista, direto, objetivo, escancararam o que se expressa no dia a dia de formas menos explícitas. O que os brutos realizaram, porque esse também é o papel dos brutos, é a materialização de uma realidade simbólica com a qual convivemos sem pruridos. Ao fazê-lo, os justiceiros nos dão, de novo, a chance de exaurirmos nossa omissão em ruidosa revolta, e voltar esgotados de imagem para o sono dos justos.
Os brutos não são a maioria, pelo menos nesse caso, pelo menos no Rio. A maioria é contra acorrentar jovens negros a postes, cortar sua orelha e arrancar suas roupas. Então, por que a abolição da escravatura ainda não se completou no Brasil? Porque nossa cumplicidade encontra caminhos para se convencer inocente.
Somos os “sonsos essenciais”. O termo é de Clarice Lispector, no melhor texto que li sobre a cena do menino negro acorrentado a um poste pelo pescoço. Com o detalhe que foi escrito na década de 60 do século passado. “Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. (...) E eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem”.
Para fazer a diferença é necessário se diferenciar. Mas só se diferencia aquele que antes se iguala. Levanta os olhos e encara, no espelho que é o outro, a enormidade de sua nudez.

Eliane Brum / Escutem o louco

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Escutem o louco

O homem que empurrou uma passageira nos trilhos do metrô desnuda o momento perturbador vivido pelo Brasil


ELIANE BRUM
3 MAR 2014 - 08:09 COT


De repente, o taxista aumentou o som da pequena TV acoplada no console do carro. No banco de trás, eu parei de ler e afinei os ouvidos. Era meio-dia da sexta-feira de Carnaval (28/2). O homem que, dias antes, havia empurrado uma passageira nos trilhos do metrô de São Paulo tinha sido preso. A mulher teve o braço amputado. O agressor sofre de esquizofrenia, destacou o apresentador de TV. “Louco”, decodificou de imediato o taxista. Doença triste, disse o apresentador na TV. Ao ser preso, continuou o apresentador, o agressor afirmou que a empurrou porque sentiu raiva. Essa parte o taxista não escutou. Algo lá fora o havia perturbado. Colou a mão na buzina, abriu a janela do carro e xingou o motorista ao lado, que tentava mudar de pista. Perdigotos saltavam da sua boca enquanto ele empunhava o dedo médio com uma mão que deveria estar no volante. Fechou a janela, para não perder a temperatura do ar-condicionado, e voltou a falar comigo. “A polícia tem de tirar os loucos da rua”. A quem ele se refere, pensei eu, confusa, olhando para fora, para dentro. Era ao louco do metrô.
Há algo de trágico nos loucos. E não apenas o que é definido como loucura nessa época histórica. Há uma outra tragédia, que é a de não ser escutado. Sempre que alguém com um diagnóstico de doença mental comete um crime, a patologia é usada para anular as interrogações e esvaziar o discurso de sentido. A pessoa não é mais uma pessoa, com história e circunstâncias, na qual a doença é uma circunstância e uma parte da história, jamais o todo. A pessoa deixa de ser uma pessoa para ser uma doença. Se há um histórico, é o de sua ficha médica, marcada por internações e medicamentos – ou a falta de um e de outro. Esvaziada de sua humanidade, o que diz é automaticamente descartado como sem substância. A doença mental, ao substituir a pessoa, explica também o crime. E, se não há sujeito, não é preciso nem pensar sobre os significados do crime, nem sobre o que diz aquele que o cometeu.
Mas o que essa escolha – a de reduzir uma pessoa a uma patologia e a de anular os sentidos do seu discurso – diz da sociedade na qual foi forjado esse modo de olhar? Se Alessandro de Souza Xavier, 33 anos, o homem que na terça-feira (25/2) empurrou Maria da Conceição Oliveira, 28, no metrô, for escutado, há algo de particularmente perturbador na justificativa que confere ao seu ato. Alessandro diz: “Fizeram um mal pra mim, e eu descontei. Fiz porque estava nervoso com o pessoal do mundo.”


O louco não expressa apenas a sua loucura. Ele também denuncia a insanidade da sociedade em que vive

O que há de particularmente perturbador nessa fala é que, quando escutada, ela desnuda o atual momento do Brasil. Vale a pena lembrar que o louco é também aquele que diz explicitamente do seu mundo. Sem mediações, ao dizê-lo ele pode sacrificar a vida de outros, assim como a sua. Vale a pena lembrar ainda que o louco não expressa apenas a sua loucura. Ele denuncia também a insanidade da sociedade em que vive.
Ao interrogar sobre os sentidos do que Alessandro diz, quando explica por que empurrou Maria, é necessário olhar para os outros crimes que viraram notícia nos últimos dias. Nenhum deles, até agora, relacionado a doenças mentais. Torcedores do São Paulo bateram com barras de ferro em um torcedor do Santos que esperava o ônibus. Bateram nele até matá-lo. Ao deparar-se com blocos de Carnaval interrompendo o trânsito, na Vila Madalena, bairro de classe média de São Paulo, um homem acelerou o carro e feriu dez pessoas. Quem estava perto o arrancou do veículo e passou a agredi-lo. Quando ele conseguiu fugir, destruíram o carro. Um casal de lésbicas foi espancado ao sair de um bloco de Carnaval, no Rio. Uma delas teve a roupa arrancada. Apenas uma pessoa na multidão ao redor tentou ajudá-las. Em Franca, no interior de São Paulo, um adolescente correu atrás de um suspeito de assalto e lhe aplicou um golpe chamado de “mata-leão” (estrangulamento). O suspeito, de 22 anos, teve um infarto após ser imobilizado e morreu no hospital. Um morador de rua foi linchado em Sorocaba (SP) por ter pegado um xampu de um supermercado. Teve afundamento do crânio. No Rio, mais um adolescente foi amarrado e agredido depois de furtar um celular. Linchamentos eclodiram em todo o país depois do caso do garoto acorrentado com uma trava de bicicleta no Flamengo. Nas semanas anteriores, dois manifestantes acenderam um rojão num protesto no Rio, matando um cinegrafista. Na Baixada Fluminense, um homem executou um suspeito de assalto com três tiros, em plena rua, durante o dia, assistido por vários. Mais de 40 ônibus foram incendiados em São Paulo em 2014.


A lucidez do louco é a de não vestir como razão a nudez do seu ódio – ou do seu medo

O discurso do louco é encarado como uma afirmação (e confirmação) da sua loucura, o que é outra forma de não escutá-lo. No caso de Alessandro, uma das provas da loucura do louco teria sido ele dizer que jogou Maria nos trilhos do metrô por raiva e também por vingança. Explícito assim. Outra prova da loucura do louco revelou-se ao afirmar que não a conhecia, que a escolheu de forma aleatória. “Desconexo” – foi o adjetivo usado para definir o discurso de Alessandro. Sua vítima não era torcedora do Santos, não era lésbica, não tinha furtado um celular ou um xampu, as desrazões interpretadas como razões. Por que, então? O louco confessou: Maria não era Maria, já que não a conhecia nem sabia o seu nome, mas o “pessoal do mundo”. A lucidez do louco talvez seja a de não vestir como razão a nudez do seu ódio – ou a nudez do seu medo. Por isso também é louco.
Diante da violência que irrompe no Brasil em todos os espaços, talvez seja a hora de escutar o louco. Talvez o fato de ele atacar no metrô não seja um detalhe descartável, uma coincidência destituída de significado. No mesmo dia em que Alessandro foi preso, morreu no hospital Nivanilde de Silva Souza, aos 38 anos. No mesmo dia em que, na Estação da Sé, Alessandro empurrou Maria, na Estação da Luz um trem atingiu a cabeça de Nivanilde. Ela tinha dito a um estagiário da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) que estava grávida, o que lhe assegurava o direito a entrar no vagão especial. O estagiário disse a ela que teria de apresentar um documento comprovando a gestação. Os dois teriam se empurrado, seguranças deram voz de prisão à Nivanilde. Na confusão, ela teria caído na plataforma. O trem bateu na sua cabeça.
No início de fevereiro, a linha-3 vermelha do metrô parou por cinco horas depois da falha em uma porta na estação da Sé, a mesma em que Alessandro empurrou Maria. No verão paulistano mais quente desde 1943, o ar-condicionado foi desligado. Pessoas vagavam pelos túneis, algumas desmaiaram, grávidas e velhos esperaram dentro de vagões abafados por horas. Pelo menos 19 dos 40 trens que circulavam na linha foram depredados.


O outro, qualquer outro, tornou-se inimigo e competidor por um lugar no trem que nos engole e nos cospe em seu vaivém automático

Os protestos de junho de 2013 começaram por causa das tarifas do transporte público, em São Paulo os 20 centavos de aumento da passagem. Naquele momento, milhares romperam o imobilismo, no concreto e no simbólico, e passaram a andar por cidades em que não se andava, vidas consumidas em ônibus e metrôs superlotados. O aumento de 20 centavos foi cancelado, mas o péssimo transporte público continuou mastigando o tempo, desumanizando gente. Basta parar para esperar o trem nos horários de pico para ser empurrado, xingado, odiado. O outro, qualquer outro, tornou-se nosso inimigo e nosso competidor por um lugar no trem que nos engole e nos cospe em seu vaivém automático. Somos passageiros que não passam, e a tensão dessa impossibilidade cotidiana pode ser apalpada. A violência é gestada como uma promessa para o segundo seguinte.
Então o louco vai lá e empurra a mulher sobre os trilhos. Rompe o imobilismo e empurra aquela que espera. Porque é louco. Caso isolado, nenhuma conexão com nada, desconexo é o seu discurso, fora da história é o seu gesto, a insanidade é só dele. Basta eliminá-lo, tirá-lo de circulação, para que a sociedade brasileira volte a ser sã. E o metrô de São Paulo um espaço de convivência agradável e pacífico, marcado pela cordialidade.
Talvez estejamos todos não loucos, mas no lugar do louco. Já não nos subjetivamos, tudo é literal. Nos mínimos atos do cotidiano nos falta a palavra que pode mediar a ação, interromper o gesto de violência antes que se complete. Mas talvez estejamos no lugar do louco especialmente porque nem escutamos, nem somos escutados. E quem não é escutado vai perdendo a capacidade de dizer. Só resta então a violência.


Reprimir os protestos é uma forma brutal de não escutar o que dizem aqueles que ainda se preocupam em dizer

Os protestos iniciados em junho pelos 20 centavos e agora centrados na Copa do Mundo são um dizer. Responder a eles com repressão – seja da polícia no espaço público, seja em projetos de lei que transformam manifestantes em terroristas, seja anunciando que o Exército vai para as ruas em tempos de democracia – é uma forma brutal de não escutar aqueles que ainda se preocupam em dizer. É talvez a maior violência de todas.
É preciso ser muito surdo para acreditar que prender todos, “deter para averiguação”, criminalizar manifestantes é suficiente para voltarmos a ser o Brasil cordial e contente que nunca existiu, 200 milhões em ação torcendo pela seleção canarinha. Que o dizer de quem deseja um Brasil diferente seja hoje expressado no campo simbólico do futebol é mais uma razão para escutá-lo, ao mostrar que estamos diante de novas construções do imaginário.
Escutem o louco. Para não colocar aqueles que protestam no lugar do louco, no lugar daquele que não é escutado porque não teria nada a dizer. E depois surpreenderem-se com a resposta violenta, convencendo-se de que não têm nada a ver com isso.

Hans Christian Andersen / As flores da pequena Ida

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Hans Christian Andersen
As flores da pequena Ida



“Minhas pobres florzinhas estão todas mortas!” disse a pequena Ida. “Elas estavam tão lindas ontem à noite, e agora todas as folhas murcharam. Porque será que isto aconteceu?” perguntou ao colega de escola, que estava sentado com ela no sofá; e de quem ela gostava muito. Ele conhecia as histórias mais lindas, e gostava de recortar as figuras mais engraçadas — corações, com mulheres dançando dentro deles, flores, e enormes castelos onde as portas podiam ser abertas: ele era um aluno feliz. “Mas porque será que as flores estão tão murchas hoje?” ela perguntou novamente, mostrando-lhe um buquê inteiro, que estava todo murcho.

“Você sabe porque isso acontece com elas?” disse o estudante. “É que as flores foram a um baile ontem à noite, e é por isso que elas estão cansadas e pendendo a cabeça.”

“Mas as flores não sabem dançar!” exclamou a pequena Ida.

“Oh, sabem sim,” disse o estudante, “quando anoitece, e nós estamos dormindo, elas dão pulo de felicidade. Quase todas as noites elas vão ao baile.”

“E as crianças também podem ir a esse baile?”

“Sim,” disse o estudante, “as pequenas margaridas, e os lírios do vale.”

“Onde as flores mais lindas ficam dançando?” perguntou a pequena Ida.

“Ora, você não sai sempre dos portões da cidade, perto do grande castelo, onde o rei vem passar o verão, é aí que fica o lindo jardim, com todas as flores? Você já deve ter visto os cisnes, que nadam ao teu encontro quando você oferece a eles migalhas de pão? Há bailes muito importantes lá, pode acreditar em mim.”

“Ontem eu saí até jardim com minha mãe,” disse Ida; “mas todas as folhas haviam caído das árvores, e não havia nenhuma folha nos galhos. Onde estão elas? No verão havia tantas.”

“Elas estão lá dentro do castelo,” respondeu o estudante. “Você devia saber, que assim que o rei e toda a sua corte vão para a cidade, as flores vão correndo do jardim para o castelo, e elas ficam felizes. Você precisava ver isso. As duas rosas mais lindas ficavam sentadas no trono, e então, fazendo de conta que eram o rei e a rainha; todos os galos com cristas vermelhas são colocados um de cada lado, ficam de pé e fazem reverência; eles são os camareiros. E depois, todas as flores belas se aproximam, e começa o grande baile. As violetas azuis representam os pequenos cadetes navais: elas dançam com os jacintos e os açafrões, a quem chamam de jovens donzelas; as tulipas e os grandes lírios de tigre são senhoras dedicadas que ficam olhando se tudo está indo bem na dança, e que tudo ocorra como planejado.”

“Mas,” perguntou a pequena Ida, “ninguém faz nada às flores, por dançarem no castelo do rei?”

“Na verdade, ninguém sabe que isto acontece,” respondeu o estudante. “Algumas vezes, com certeza, o velho administrador do castelo vem algumas noites, para dar uma olhada. Ele costuma trazer um grande molho de chaves; mas assim que as flores ouvem o barulho das chaves, elas ficam bem quietinhas, se escondem atrás de longas cortinas, ficando somente com as cabeças de fora. Então, o velho administrador diz, "Estou sentindo o cheiro de flores aqui," mas ele não consegue vê-las.

“Que legal!” exclamou a pequena Ida, batendo palminhas. Mas será que eu consigo ver as flores?”

“Claro que sim,” disse o estudante; “lembre-se apenas de espiar pela janela, quando você for sair novamente; então, você as verá. Foi o que eu fiz hoje. E lá estava um longo lírio amarelo deitado no sofá se espreguiçando. Ele se imaginava um cavalheiro da corte.”

“Será que as flores do Jardim Botânico também podem sair para ir lá? Elas conseguem percorrer longas distâncias?”

“É claro que podem,” respondeu o estudante; “se quiserem, elas podem até voar. Você já viu as lindas borboletas, vermelhas, amarelas, e brancas? Elas se parecem muito com as flores; e é isso o que elas já foram. Elas voaram de seus caules para o céu lá no alto, batendo no ar com suas folhinhas, como se as folhinhas fossem pequenas asas, e assim voaram. E como elas se comportaram direitinho, elas tiveram permissão para voar durante o dia também, e não tinham que voltar para casa novamente para ficarem sentadinhas em seus caules; e assim finalmente as asas se tornaram asas de verdade. Foi isso que você viu.

No entanto, pode ser que as flores do Jardim Botânico jamais estiveram no castelo do rei, ou jamais ficaram sabendo dos alegres festejos que acontecem por lá a noite. Por isso vou lhe dizer uma coisa: o professor de botânica, que mora perto daqui, ficará muito surpreso. Você já viu ele, não viu? Quando você for ao jardim da casa dele, você deve dizer à uma das flores, que no castelo, todas as noites, há um grande baile. Então, esta flor irá contar para todas as outras, e todas elas irão voar: se o professor então, sair para o jardim, nenhuma flor estará ali, e ele nem conseguirá imaginar para onde elas foram.”

“Mas como uma flor pode contar para a outra? Pois, sabemos que as flores não podem falar.”

“Isso é verdade, elas não podem,” respondeu o estudante; “mas elas conseguem fazer sinais. Você já percebeu que quando o vento sopra levemente, as flores ficam balançando umas para as outras, e mexem suas folhas verdes? Elas entendem esses sinais tão bem como se estivessem conversando.”

“Será que o professor consegue entender esses sinais?” perguntou Ida.

“Sim, com certeza. Um dia de manhã ele veio até o jardim, e viu que havia ali um grande pé de urtiga, que estava fazendo sinais com suas folhas para um lindo cravo vermelho. Ele estava dizendo, "Você é tão linda, e eu te amo muito." Mas o professor não gostava muito dessas coisas, e ele bateu diretamente nas folhas da urtiga, porque as folhas são as mãos das plantas; e ele sentiu que foi picado, e desde então, nunca mais ousou tocar na folha de uma urtiga.”

“Isso foi engraçado,” exclamou a pequena Ida; e ria muito.

“Como é que alguém pode colocar essas coisas na cabeça de uma criança?” disse o chato do conselheiro secreto, que tinha vindo para fazer uma visita, e estava sentado no sofá. Ele não gostava do estudante, e resmungava sempre quando o via recortando as figuras cômicas e engraçadas — que algumas vezes era um homem pendurado numa forca e segurando um coração na mão, para mostrar que ele era um ladrão de corações; outras vezes uma velha bruxa voando numa vassoura, levando o marido no nariz. O conselheiro não conseguia aguentar isso, e então, ele disse, como fez agora, “Como é que alguém pode colocar essas coisas na cabeça de uma criança? São fantasias estúpidas!”

Mas, para a pequena Ida, o que o estudante havia falado sobre as flores parecia muito divertido; e ela ficou pensando muito sobre isso. As flores estavam com as cabeças penduradas, pois elas estavam cansadas, porque elas tinham dançado a noite toda; podiam até estarem doentes. Então, ela as levou até onde estavam todos os seus brinquedos, em cima de uma bonita mesinha, e a gaveta estava toda cheia de coisas lindas. Na cama das bonecas estava a sua boneca Sofia, dormindo; mas, a pequena Ida disse para ela:

“Agora você precisa acordar, Sofia, e tentar dormir na gaveta esta noite. As pobres florzinhas estão doentes, e elas precisam deitar em sua cama; talvez, então, elas fiquem boas novamente.”

E ela, imediatamente, tirou a boneca; mas a boneca parecia estar zangada, e não disse nem uma palavra; ela estava brava, porque não podia deitar na própria cama.

Então, Ida colocou as flores na cama da boneca, cobriu-as com o pequeno cobertor, e disse que elas podiam dormir descansadas para ficarem boas, depois ela iria preparar um pouco de chá, para que elas pudessem sarar, e poderem se levantar no dia seguinte. E ela puxou bem as cortinas em volta da caminha, para que o sol não incomodasse os olhinhos delas. E durante toda a noite ela não conseguia deixar de pensar no que o estudante havia lhe falado. E quando ela mesma estava indo dormir, fez questão de olhar por traz das cortinas penduradas nas janelas onde ficavam as lindas flores da sua mãe — alguns jacintos bem como algumas tulipas; então, ela sussurrou bem baixinho, “Eu sei que vocês vão ao baile hoje a noite!” Mas as flores faziam de conta que não haviam entendido nenhuma palavra, e não moviam sequer uma folha, ainda assim, a pequena Ida sabia que elas haviam entendido.

Quando ela foi para cama, ela ficou durante muito tempo pensando como seria lindo ver as flores felizes dançando no castelo do rei. “Gostaria de saber se as minhas florzinhas já estiveram lá?” E então, adormeceu. Durante a noite ela acordou: ela tinha sonhado com as flores, e com o estudante que o conselheiro havia repreendido. Estava muito tranquilo no quarto em que Ida dormia; a lamparina brilhava em cima da mesa, e a mãe e o pai dela também estavam dormindo.

“Preciso saber se as minhas flores estão ainda deitadas na cama da Sofia?” pensava consigo mesma. “Ah, como eu gostaria de saber!” Então, ela se levantou, e olhou pela porta que ficou entreaberta; e lá estavam as flores e todos os seus brinquedos. Ela ficou escutando, e então, lhe pareceu ter ouvido alguém tocando o piano no quarto ao lado, suave e divinamente, como ela nunca tinha ouvido antes.

“Agora, com certeza, todas as flores estarão dançando lá dentro!” pensou ela. “Oh, como eu gostaria de ver isso!” Mas ela não ousou sair do lugar, pois ela poderia incomodar o seu pai e a sua mãe.

“Ah, se as flores pudessem vir até aqui!” pensou ela. Mas elas não vinham, e a música continuava a tocar maravilhosamente; então, ela não aguentou mais, porque a música era linda demais; e saiu bem devagarzinho da cama, e tranquilamente caminhou até a porta, e deu uma olhada dentro do quarto. Oh, o que ela viu, era tudo tão esplêndido!

A lamparina não estava iluminando, mas tudo estava tão claro: a lua brilhava pela janela e refletia no meio do ambiente; parecia que era dia. Todos os jacintos e tulipas desfilavam em duas longas filas no chão; não havia nenhuma delas na janela. Todos os vasos de flores estavam vazios. No chão, todas as flores dançavam graciosamente umas ao redor das outras, criando uma corrente perfeita, e abraçavam-se umas às outras com as longas folhas verdes fazendo uma roda. Mas no piano tocava um grande lírio amarelo, que a pequena Ida certamente o tinha visto no verão passado, pois ela se lembrava do que o estudante havia lhe falado, “Como ela se parece com a Senhorita Lina.”

Então, todos riram dele; mas agora, para a pequena Ida, parecia mesmo, como se a longa flor amarela fosse, sem dúvida, a jovem dama; com os seus mesmos modos de tocar — algumas vezes inclinando sua longa face amarela para um lado, outras vezes para o outro lado, e balançando a cabeça no ritmo da encantadora música! Ninguém notou a pequena Ida. Então, ela viu um grande açafrão azul pular em cima da mesa, onde estavam os brinquedos, e ir até a cama das bonecas e puxar as cortinas de lado; ali estavam as flores doentes, mas elas se levantaram imediatamente, e balançavam-se umas para as outras, como a dizer que desejavam dançar também. O velho boneco limpador de chaminés, cujo lábio inferior se partira, ficou de pé e fazia reverência para as flores sorridentes: e elas não pareciam estar doentes agora; ela davam pulos no meio das outras, e estavam muito felizes.

Então, pareceu que alguma coisa caiu da mesa. Ida olhou nessa direção. Era a atrevida vara de bétula que havia pulado! Ela parecia acreditar que também fosse uma flor. De qualquer forma, tudo era muito lindo; um pequeno boneco de cera, com um chapéu tão grande na cabeça igual ao que o conselheiro usava, sentou em cima dela. A vara de bétula pulava entre as flores com suas três pernas, e ela batia o pé bem alto, porque estava dançando a mazurca; e as outras flores não conseguiam dançar essa música, porque elas eram leves demais, e não conseguiam bater o pé com força daquele jeito.

O boneco de cera sobre a vara de bétula de repente ficou grande e longo, deu uma volta sobre as flores de papel, e disse, “Como é que alguém pode colocar essas coisas na cabeça de uma criança? São fantasias estúpidas!” ora, o boneco de cera era exatamente o conselheiro com o seu longo chapéu, e era mesmo amarelo e mal humorado como ele. Mas as flores de papel batiam-lhe nas pernas finas, obrigando-o a se encolher, e tornar-se novamente um pequenino boneco de cera. Isso era muito engraçado de ver; e a pequena Ida não conseguia parar de rir. A vara de bétula continuou dançando, e o conselheiro foi obrigado a dançar também; não importava se ele quisesse ficar grande e longo, ou permanecer o pequeno boneco de cera amarelo com o grande chapéu preto. Então, as outras flores decidiram ajudá-lo, principalmente aquelas que haviam se deitado na cama da boneca, e então, a vara de bétula parou de dançar. No mesmo instante, ouviu-se uma batida forte dentro da gaveta, onde Sofia, a boneca de Ida, estava com muitos outros brinquedos. O limpador de chaminés correu até a ponta da mesa, deitou de bruços, e começou a puxar a gaveta. Sofia então, se levantou, e olhava ao redor admirando tudo aquilo.

“Está havendo um baile aqui,” disse ela; “porque ninguém me avisou?”

“Você quer dançar comigo?” perguntou o limpador de chaminés.

“Até parece que você é o tipo ideal para dançar!” ela respondeu, e virou as costas para ele.

Então, ela sentou na gaveta, e achou que uma das flores viria convidá-la para dançar; mas nenhuma apareceu. Então, ela tossiu, “Hum! hum! hum!” mesmo assim ninguém veio. O limpador de chaminés dançou sozinho, e isso não era tão mau.

Como nenhuma das flores pareciar notar Sofia, ela então, pulou da gaveta e foi direto para o chão, fazendo um grande barulho. As flores então, vieram todas correndo, e perguntaram se ela tinha se machucado; e foram todas muito educadas com ela, principalmente as flores que haviam se deitado em sua cama. Mas ela não havia se machucado; e todas as flores de Ida lhe agradeceram pela cama deliciosa, e foram muito gentis com ela, e a levaram até o meio do salão, onde a lua brilhava, e dançaram com ela; e todas as outras flores fizeram um círculo em torno dela. Ora, Sofia estava feliz, e disse que elas podiam ficar na sua cama; ela não se importava nem um pouquinho de dormir dentro da gaveta.

Mas as flores disseram, “Nós te agradecemos de todo o coração, mas nós não vivemos por muito tempo. Amanhã já estaremos totalmente mortas. Mas diga à pequena Ida para que ela nos enterre fora do jardim, onde fica o canário; então, nós despertaremos de novo no verão, e seremos muito mais lindas.”

“Não, vocês não podem morrer,” disse Sofia beijando as flores.

Nesse instante a porta se abriu, e um montão de flores maravilhosas entraram dançando. Ida não conseguia imaginar de onde elas tinham vindo; certamente todas elas eram flores que tinham vindo do castelo do rei. Na frente de todas vinham duas rosas gloriosas, usando coroas douradas na cabeça; eram o rei e a rainha. Depois vieram os mais lindos goivos e cravos; e eles faziam reverências em todas as direções. Todos estavam dançando. Grandes papoulas e peônias vinham soprando vagens de ervilha até ficarem com a cara vermelha. Os jacintos azuis e as pequeninas campânulas-brancas vibravam como vibram os sinos. A música era maravilhosa! Depois iam chegando muitas outras flores, e todas dançando juntas; as violetas azuis e as róseas primaveras, as margaridas e os lírios do vale. E todas as flores se beijavam. Era lindo de se ver!

Até que as flores desejaram boa noite umas para as outras; então, a pequena Ida, também foi para a cama, onde ela sonhou com tudo que tinha visto.

Quando ela acordou na manhã seguinte, ela correu rapidamente até a pequena mesa, para ver se as flores ainda estavam lá. Ela puxou de lado as cortinas da pequena caminha; e lá estavam todas elas, mas elas estavam muito murchas, mais do que no dia anterior. Sofia estava deitada na gaveta onde Ida a havia colocado; ela parecia dormir profundamente.

“Você se lembra do que você queria dizer para mim!” perguntou a pequena Ida.

Mas Sofia estava embevecida, e não disse uma única palavra.

“Você não foi boazinha!” disse Ida. “E no entanto todos dançaram com você.”

Então, ela pegou uma pequena caixa de papel, onde lindos pássaros estavam pintados, e a abriu, e colocou as flores mortas dentro dela.

“Este será o lindo ataúde de vocês,” disse ela, “e quando os meus primos da Noruega vierem me visitar de vez em quando, eles me ajudarão a sepultá-las fora do jardim, para que vocês floresçam novamente no verão, e se tornem mais lindas do que nunca.”

Os primos da Noruega eram garotos muito inteligentes. Seus nomes eram Jonas e Adolfo; o pai deles havia dado a eles dois novos arcos, e eles haviam trazido os arcos para mostrar para Ida. Ela contou para eles sobre as pobres florzinhas que haviam morrido, e então, eles tiveram permissão para sepultá-las. Os dois garotos iam na frente, com seus arcos nos ombros, e a pequena Ida ia logo atrás com as flores mortas dentro da linda caixa. Fora do jardim uma linda sepultura foi aberta. Ida primeiro beijou as flores, e depois as colocou na terra dentro da caixa, e Adolfo e Jonas lançaram seus arcos sobre a sepultura, porque eles não tinham armas nem canhões.



Hans Christian Andersen / A princesa Thumbelina

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Hans Christian Andersen

A princesa Thumbelina

Era uma vez uma mulher que queria muito ter um filho; mas ela não sabia a quem recorrer. Então, ela procurou uma velha bruxa, e falou,
— “Gostaria muito de ter um filho! será que você saberia onde eu poderia conseguir um?”
— “Oh! mas isso é muito fácil,” disse a bruxa. “Veja, você tem aqui um grão de cevada: esse não é do tipo que cresce no campo dos fazendeiros, e que as galinhas adoram comer. Coloque o grão dentro de um vaso de flores, e você verá o que vai acontecer.”
— “Muito obrigada,” disse a mulher, entregando a ela uma moeda de prata.
Então, ela foi para casa e plantou o grão de cevada, e imediatamente surgiu uma flor grande e linda, que se parecia com uma tulipa; mas as folhas estavam muito fechadas, como se fossem ainda um botão.
— “É uma flor muito bonita,” disse a mulher; e ela beijava suas belas folhas amarelas e vermelhas. Mas quando ela estava beijando, a flor se abriu fazendo um barulho muito alto. Era um tulipa de verdade, como ela podia ver agora; mas na parte central da flor ela viu uma menina muito extraordinariamente pequena, sentada em cima de um estame verde, olhando delicada e graciosamente. Sua altura não chegava a metade do comprimento de um polegar, e por isso ela foi chamada de Thumbelina ou "A pequena polegar".
Uma casca de noz extremamente limpa servia de berço para Thumbelina, folhas de violetas azuis eram o seu colchão, e o seu cobertor era uma pétala de rosa. Ali ela dormia à noite; mas durante o dia ela brincava em cima da mesa, onde a mulher colocava um prato rodeado por uma coroa de flores, cujos caules ficavam dentro da água; dentro da água, uma folha de tulipa ficava flutuando, e sobre a folha a graciosa menina ficava sentada, e ficava remando de um lado para outro do prato, com dois pelos brancos de cavalos que lhe serviam de remos. O cenário era mesmo encantador! Ela também gostava de cantar, e de fato, ela cantava com tanta delicadeza e suavidade, que jamais se ouviu alguém cantar assim.
Uma noite, quando ela estava deitada em sua bela caminha, eis que apareceu um sapo velho e assustador e que saltou pela janela, onde um dos vidros estava quebrado. O sapo era muito feio, grande e todo ensopado: ele saltou direto para cima da mesa, onde Thumbelina estava dormindo debaixo de uma pétala de rosa vermelha.
— “Oh, ela seria uma bela esposa para o meu filho,” disse o Sapo; e ele pegou a casca de noz onde a Thumbelina estava deitada, e saltou pela janela que dava direto para um jardim.
Ali passava um grande e largo córrego; mas as suas margens eram lamacentas e escorregadias, e o sapo morava ali com seu filho. Credo! como ele era feio, muito embora tivesse a cara do pai. “Croc! Croc! brek kek-kek!” era tudo o que ele sabia dizer quando ele viu a graciosa garotinha na casca de noz.
— “Não grite tão alto assim, ou ela poderá acordar,” disse o sapo velho. “Ela poderia escapar de nós, porque ela é tão leve como um pedacinho da pena do ganso. Nós vamos colocá-la no córrego em cima de uma daquelas folhas de lírio-d’água. Ela pensaria que está numa ilha, porque ela é muito pequena e leve. Então, ela não conseguirá fugir, enquanto organizamos o salão de festa que fica debaixo da lama, onde você e ela vão viver juntos e cuidar da casa.”
Por todo o córrego cresciam muitos lírios d’água com folhas grandes e verdes, que pareciam estar flutuando sobre as águas. A folha mais distante era também a maior de todas, e o sapo velho foi nadando e colocou a casca de noz com Thumbelina em cima dela. A pobre criaturinha acordou cedo na manhã seguinte, e quando percebeu onde estava, ela começou a chorar desesperadamente; pois em torno da imensa folha verde só havia um mar de águas, e ela não conseguia chegar em terra de jeito nenhum. O sapo velho estava sentado na lama, e enfeitava o quarto com ubás e lírios-d’água amarelos — ele tinha de caprichar bastante porque a futura nora iria morar nele; depois ele nadou, com seu filho que era um exagero de feiúra, até a folha onde a Thumbelina havia sido levada. Eles queriam pegar a linda caminha onde ela estava, para ser colocada na câmara nupcial antes que ela passasse a residir ali. O sapo velho fez uma profunda reverência na água para ela, e disse,
— “Aqui está o meu filho; ele será o teu marido, e vocês terão uma vida esplendorosa aqui no pântano.”
— “Croc! Croc! brek-kek-kek!” era tudo o que seu filho sabia dizer.
Então, eles pegaram a elegante caminha, e nadaram de volta com ela; mas Thumbelina ficou sentada ali sozinha em cima da grande folha verde e chorava, pois ela não gostava da ideia de viver perto daquele sapo nojento, nem sequer admitia ter seu filho como marido. Os peixinhos que nadavam debaixo dágua viram o sapo, e também tinham ouvido o que ele havia dito; então, eles colocaram suas cabeças para fora, porque eles queriam conhecer a garotinha. Então, quando eles a viram, eles constataram que ela era tão linda, e por isso lamentaram muito que ela tivesse que conviver com aquele sapo velho. Não, isso nunca poderá acontecer! Eles se reuniram em assembleia debaixo dágua em torno do caule verde que prendia a folha, onde a pequenina ficava, e roeram o caule com seus dentes afiados, e assim a folha se soltou e começou a flutuar pelo córrego; levando Thumbelina para bem longe, onde o sapo jamais poderia alcançá-la.
Thumbelina navegou por muitos lugares, e os passarinhos que estavam sentados nos galhos das árvores olhavam para ela, e disseram, “Como ela é uma garota bonita!” A folha continuava flutuando com ela, cada vez indo para mais longe; então, Thumbelina viajou por toda a região.
Uma graciosa borboletinha branca continuava a adejar suas asas em torno dela, e finalmente pousou em cima da folha. Thumbelina gostou da borboleta, e ela estava tão maravilhada, porque o sapo agora não poderia mais alcançá-la; e os lugares por onde ela passava, era tudo muito lindo — o sol brilhava refletindo seus raios na água, era como ouro reluzente. Ela tirou o cinto que usava e amarrou uma ponta dele em torno da borboleta, e prendeu a outra ponta na folha que ela estava. A folha agora deslizava com muito mais velocidade, e Thumbelina também, porque ela estava em cima da folha.
E eis que um escaravelho enorme apareceu e veio voando; e quando a viu, imediatamente ele a agarrou pela sua cintura delicada, e ele voou levando ela e foi subindo até uma árvore. A grande folha verde continuou flutando pelo córrego, levando a borboleta em seu regaço; porque ela tinha ficado presa à folha, e não conseguia se livrar dela.
Que horror! a pequena Thumbelina ficou assustada quando o escaravelho voou com ela para o topo da árvore! Mas ela teve muita pena por causa da delicada borboleta branca que ela havia bem amarrado à folha, porque se a borboleta não conseguisse se libertar da folha, ela poderia morrer de fome. O escaravelho, todavia, não se preocupava nada com isto. Ele se sentou com ela sobre a maior folha verde da árvore, ofereceu para que ela comesse a parte mais doce das flores, e falou que ela era muito bonita, muito embora ela não se parecesse nem um pouquinho com um escaravelho. Depois foram chegando todos os outros escaravelhos que viviam na árvore para lhe fazer uma visita: eles olharam para Thumbelina, e as esposas dos escaravelhos encolheram suas antenas e disseram,
— “Credo, ela só tem duas pernas! — que aparência esquisita.”
— “E ela não tem nenhuma antena!” gritou uma outra.
— “A cintura dela é muito fina — que horror! ela parece uma criatura humana — como ela é feia!” disseram todas as mulheres dos escaravelhos.
E no entanto, Thumbelina era muito bonita. Até mesmo o escaravelho que havia voado com ela pensava desse jeito; mas quando todas as outras falaram que ela era feia, ele acabou acreditando, e perdeu todo interesse por ela — ela que fosse para onde quisesse. Então, eles desceram voando com ela de cima da árvore, e a depositaram em cima de uma margarida, e ela chorava, porque diziam que ela era feia e por isso os escaravelhos não tinham nenhum interesse por ela; e no entanto, ela era a criaturinha mais adorável que alguém poderia imaginar, e era tão frágil e delicada como uma pétala de rosa.
Durante todo o verão a pobre Thumbelina vivia em completa solidão na imensa floresta. Ela teceu para si mesma uma cama com a ramagem da grama, e a pendurou debaixo de uma grande folha de bardana, para que ela ficasse protegida da chuva; ela colheu um pouco de mel das flores como alimento, e bebia o orvalho que escorria das folhas todos os dias. De modo que o outono e o verão passavam rápidos; mas agora o inverno havia chegado, o longo e gelado inverno.
Todos os pássaros que costumavam cantar com tanta doçura para ela foram embora; flores e árvores derrubavam suas dolhas; a grande folha de bardana debaixo da qual ela vivia encolheu, não ficando nada mais do que um caule amarelo e murcho; e ela tinha muito medo do frio, porque as suas roupas haviam rasgado, e era tão frágil e delicada — ó pobre Thumbelina! que quase ficou congelada. Começou a nevar, e cada floco de neve que caía sobre ela fazia o mesmo efeito que uma pá carregada em cima de um adulto, porque nós somos grandes, e ela tinha apenas uma polegada de altura. Foi ai que ela se enrolou numa folha seca, mas que era muito pouco para aquecê-la — e ela tremia de frio.
Perto da floresta para onde agora ela tinha vindo, havia uma grande plantação de milho, mas há muito tempo que não havia mais milho; apenas restolhos secos e expostos teimavam em se levantar da terra congelada. Tudo isto parecia uma imensa floresta para ela atravessar com seus pés diminutos; e, oh! como ela sofria por causa do frio. Finalmente ela conseguiu chegar na porta da casa do Rato do Campo. Este rato vivia dentro de um pequeno buraco debaixo dos restolhos. Era ali que o Rato do Campo morava, quente e confortável, e ele havia construído um depósito cheio de milho — uma cozinha de dar inveja e uma despensa. A coitadinha parou diante da porta como uma mendiga pobre e carente, e pediu um pouco de grãos de cevada, porque ela não havia comido nada durante os últimos dois dias.
— “Oh, pobre garotinha,” disse o Rato do Campo — pois afinal de contas ele era um bom e velho Rato do Campo — ”entre na minha casa e jante comigo hoje.”
E como ele ficou contente com a visita de Thumbelina, ele falou, “Se você quiser você pode ficar aqui comigo durante todo o inverno, porém, você deve manter o meu quarto quente e asseado, e também me contar histórias, porque eu gosto muito de ouvir histórias.”
E Thumbelina fez como o velho Rato do Campo lhe pediu, e passou um tempo muito agradável na companhia dele.
— “Muito em breve nós receberemos uma visita,” disse o Rato do Campo. “O meu vizinho tem o hábito de me visitar todas as semanas.
Ele ainda é melhor do que sou, sua casa tem quartos enormes, e ele também tem um casaco de pele negro e lindo. Se você pudesse casar-se com ele nunca lhe faltaria nada; o único problema é que ele não consegue enxergar. E você poderia contar a ele as histórias mais lindas que você conhece.”
Mas Thumbelina não se preocupava com estas coisas; a ideia de se casar com o vizinho em nada lhe interessava, porque ele era um Toupeira. Ele vinha fazer suas visitas usando seu casaco de pele de veludo negro. O Rato do Campo havia lhe falado como o Toupeira era rico e sábio também, e como a casa dele era vinte vezes maior que a do Rato do Campo; que ele era uma pessoa culta, mas que não gostava do sol e das flores bonitas, e falava coisas desagradáveis sobre eles porque nunca os havia conhecido.
O Toupeira queria que Thumbelina cantasse para ele, e ela cantou “Escaravelho, vá embora,” e “Quando o pastor foi ao campo.” Então, o toupeira se apaixonou por ela, por causa da suavidade da sua voz; mas ele não dizia nada, porque ele era um bicho muito sossegado.
Algum tempo antes, ele havia cavado um longo túnel debaixo da terra desde a sua casa até a casa do Rato do Campo; e Thumbelina e o Rato do Campo tinham permissão para caminhar por este túnel tanto quanto desejassem. Mas ele os alertou para que não ficassem com medo do pássaro morto que iriam encontrar no meio do túnel. Era um pássaro inteiro, tinha até asas e bico. Certamente ele deve ter morrido somente algum tempo antes do inverno começar, e agora estava enterrado bem no local onde o Toupeira havia construído a passagem.
O Toupeira pegou um pouco de madeira em decomposição na boca, porque a madeira brilha como fogo no escuro; e ele seguia na frente e iluminava o caminho para eles através do túnel longo e escuro. Quando eles chegaram ao local onde estava o pássaro morto, o Toupeira levantou o seu espaçoso nariz contra a parede do teto empurrando um pouco de terra, de modo que um buraco grande se formou, através do qual a claridade do dia podia brilhar. E no meio do caminho estava uma Andorinha morta, suas lindas asas pressionadas nas laterais do seu corpo, e tendo a cabeça e os pés escondidos debaixo de suas asas: a pobre ave certamente tinha morrido de frio.
Thumbelina ficou muito triste com isto; pois ela gostava de todas as aves pequenas, porque elas cantavam e gorjeavam encantadoramente para ela durante todo o verão; mas o Toupeira lhe deu um empurrão com suas pernas curtas, e disse, “Este não consegue piar mais. Deve ser muito triste ter nascido uma ave tão pequena. Graças a Deus que nenhum de meus filhos vão ser tão pequenos assim: esses passarinhos não sabem fazer nada senão um "tuit-tuit", e depois morrem de fome no inverno!”
— “Sim, você, como um animal sensível, deve ter lá suas razões,” observou o Rato do Campo. “Para que serve todo esse "tuit-tuit" para uma ave quando chega o inverno? Então, ela morre de frio e de fome. Mas tem gente que acha isso que fazer isso é muito legal.”
Thumbelina não dizia nada; mas quando os outros dois viraram suas costas para o pássaro, ela se curvou, colocou as asinhas que cobriam a cabeça da Andorinha de lado, e lhe deu um beijinho com os olhos fechados.
— “Talvez tenha sido ele que cantou para mim tão maravilhosamente durante o verão,” pensou ela. “Certamente, me deu muita alegria, este lindo pássaro!”
O Toupeira fechou agora o buraco por onde entrava a luz do sol, e fez questão de acompanhar os amigos para casa. Mas quando a noite chegou, Thumbelina não conseguia dormir de jeito nenhum; então, ela se levantou da cama, e decidiu tecer um grande e lindo tapete de feno, e foi levá-lo e o estendeu sobre o pássaro morto, e colocou um pouco de algodão macio, que ela havia encontrado num dos depósitos do Rato do Campo, ao redor da ave, para que ele pudesse sentir um pouco de calor no chão gelado.
— “Adeus, minha ave adorada!” disse ela. “Adeus! e obrigado pelas tuas lindas canções durante o verão, quando todas as árvores eram verdes, e o sol descia com seus raios aquecendo nossas cabeças.” Depois ela colocou a sua cabeça sobre o peito do pássaro, mas de repente ela se assustou, pois parecia que algo estava batendo dentro dele. Era o coração dela. A ave não estava morta; ela estava apenas dormindo ali, entorpecida pelo frio; e como havia sido aquecida, ela voltou à vida novamente.
No outono, todas as andorinhas voam para regiões quentes, mas por acaso se algumas delas se atrasa, o frio pode surpreendê-la e ela vem ao chão como se estivesse morta, sem sair do lugar de onde caiu, e então, ela fica coberta pela neve gelada.
Thumbelina tremia muito, porque ela estava assustada; porque a ave era grande, muito grande, comparada à ela, que tinha apenas uma polegada de altura. Ela porém, encheu-se de coragem, colocou o algodão mais perto em torno da ave indefesa, e trouxe uma folha de hortelá que ela costumava usar de cobertor, e a colocou sobre a cabeça da ave.
Na noite seguinte ela foi bem devagarzinho onde a ave estava — e percebeu que ela ainda estava viva, mas muito fraca; apenas por um momento ela conseguiu abrir os olhinhos, e olhou para Thumbelina, que estava diante dela e trazia um pouco de madeira em decomposição nas mãos, porque ela não tinha outra forma de iluminação.
— “Obrigada, minha linda garota,” disse a Andorinha convalescente; “Você me aqueceu de modo esplêndido. Logo vou conseguir recuperar as minhas forças, e poderei voar pelo mundo afora para sentir o calor do sol.”
— “Oh,” exclamou a menina, “lá fora está muito frio. Há neve e gelo por toda parte. Fique aqui na sua caminha quente, e eu cuidarei de você.”
Então, ela trouxe água para a Andorinha na pétala de uma flor; e a Andorinha bebeu, e contou à garota como havia machucado uma de suas asas num espinheiro, e então, ela não conseguia voar como as outras andorinhas, que conseguiam empreender mais velocidade, voando para longe, em direção às regiões mais quentes. Então, não aguentando mais, ela acabou caindo no chão, e não conseguia se lembrar de mais nada, e portanto, não sabia como ela veio parar ali onde a menina a havia encontrado.
A Andorinha permaneceu naquele lugar durante todo o inverno, e Thumbelina cuidou e tratou dela com todo o cuidado. Nem o Rato do Campo nem o Toupeira ficaram sabendo nada sobre essa história, porque eles não gostavam da pobre Andorinha. Então, assim que a primavera chegou, e o sol abraçou a terra com seu calor, a Andorinha se despediu de Thumbelina, e ela abriu o buraco que o Toupeira havia feito no teto para passagem da claridade. O sol gloriosamente caía sobre suas cabeças, e a Andorinha perguntou se Thumbelina queria ir com ela; ela disse que a menina poderia sentar em suas costas, e elas voariam para longe, para muito longe do verdor da floresta. Mas Thumbelina sabia que o velho Rato do Campo ficaria triste se ela o deixasse.
— “Não, eu não posso!” disse Thumbelina.
— “Então, adeus, adeus, minha boa e bondosa menina!” disse a Andorinha; e voou para as regiões ensolaradas. Thumbelina ficou olhando em direção a ela, e lágrimas afloraram em seus olhos, porque ela gostava muito da pobre Andorinha.
— “Tuit-uit! Tuit-uit!” cantava o passarinho, voando em direção à floresta verde. Thumbelina se sentiu muito triste. Ela não tinha permissão para sair para tomar sol. O milho que havia sido plantado no campo perto da casa do Rato do Campo crescia agora muito alto; para a pequena garotinha aquilo era uma densa floresta, pois ela era muito pequenininha. — “Agora você precisa preparar o seu enxoval neste verão,” disse o Rato do Campo para ela; pois o seu vizinho, o entediante Toupeira com casaco de veludo, havia proposto casamento a ela. “Você vai precisar de roupas de linho e de lã; nada poderá faltar quando você se tornar a esposa do senhor Toupeira.”
Thumbelina precisa fazer a roca funcionar, e o Toupeira contratou quatro aranhas para fiar e tecer para ela a noite toda. Todas as noites o Toupeira lhe fazia uma visita; e ele vivia sempre dizendo que quando o verão estivesse quase acabando, e o sol já não brilhasse e aquecesse como antes, porque agora ele queimava a terra tornando-a tão dura como pedra. Sim, quando o verão tivesse ido embora, então, ele realizaria o seu casamento com Thumbelina.
Mas ela não estava satisfeita de modo nenhum, porque ela não gostava do Toupeira, porque ele era muito entediante. Todas as manhãs quando o sol nascia, e todas as tardes quando o sol se punha, ela ía de fininho até a porta; e quando o vento separava as espigas de milho, para que ela pudesse ver o céu azul, ela pensava como o dia lá fora era lindo e gostoso, e tinha muita vontade de ver a sua amiga Andorinha novamente. Mas a Andorinha não voltava; sem dúvida ela havia voado para longe, para dentro de floresta verde e aconchegante. Quando o outono havia chegado, Thumbelina já havia terminado todo o seu enxoval.
— “Dentro de quatro semanas você estará celebrando o seu casamento,” disse para ela o Rato do Campo.
Mas Thumbelina chorava, e dizia que ela não queria se casar com o chato do Toupeira.
— “Que tolice,” dizia o Rato do Campo; “não seja teimosa, ou eu mordo você com meus dentes brancos. A criatura com quem você irá se casar é uma pessoa que tem estilo. A própria rainha não possui um casaco de pele de veludo preto; além disso a sua cozinha e as outras dependências tem de tudo. Seja grata pela tua boa sorte.”
Ora, o casamento ia ser realizado. O Toupeira já havia mandado buscar Thumbelina; ela iria morar com ele, bem debaixo da terra, e jamais poderia sair para sentir o calor do sol, pois que ele não gostava de tomar sol. A coitadinha ficou muito triste; ela teria que se despedir do glorioso sol agora, o qual afinal de contas, ela tinha permissão do Rato do Campo para ver todos os dias na porta da sua casa.
— “Adeus, meu sol adorado!” dizia ela, e esticava os seus braços em direção ao alto, e caminhou alguns passos de distância da casa do Rato do Campo, porque agora o milho havia sido colhido, e apenas os restolhos secos se espalhavam pelos campos. “Adeus!” repetiu ela, e esticava seus bracinhos em torno de uma pequena flor vermelha que ainda florescia por ali. “Mande beijos para a Andorinha em meu nome, se ela aparecer novamente.”
— “Tuit-uit! Tuit-uit!” um piado subitamente soou acima da sua cabeça. Ela olhou para cima; era a Andorinha, que acabava de chegar voando. Quando ela viu Thumbelina, ela ficou muito feliz; e Thumbelina falou para ela o quanto ela relutava para se casar com o feio do Toupeira, e que ela teria de viver embaixo na escuridão da terra, onde o sol nunca chega. E ela não conseguia parar de chorar.
— “O inverno gelado está chegando agora,” disse a Andorinha; “E eu vou voar para bem longe em busca de regiões quentes. Você não gostaria de vir comigo? Você poderia sentar nas minhas costas, você deve apenas ficar bem presa com seu cinto, então, nós voaremos para longe do repulsivo Toupeira e da sua casa escura — longe, muito longe, para além das montanhas, para lugares bem quentes, onde o sol brilha com mais beleza do que aqui, onde o verão parece uma eternidade, e existem flores encantadoras. Venha voar comigo, minha pequena Thumbelina, você salvou a minha vida quando eu fiquei congelado naquela passagem subterrânea e escura.”
— “Sim, eu irei com você!” disse Thumbelina, então, ela se subiu nas costas do passarinho, e colocou os pés em suas asas estendidas, e amarrou o seu cinto bem forte a uma de suas asas mais resistentes; então, a Andorinha voou para o alto acima da floresta e do mar, muito além das montanhas gigantes, sempre cobertas de neve; e Thumbelina sentiu frio no ar gelado, mas quando ela andou debaixo das asas quentes da andorinha, e colocava a sua pequena cabecinha para fora somente para admirar todas as maravilhas que haviam lá embaixo.
Finalmente eles chegaram nas regiões mais quentes. Ali o sol era mais caloroso e mais forte; o céu parecia duas vezes mais alto; em vales e nas cercas cresciam as uvas mais belas e deliciosas; limões e laranjas brotavam por toda a floresta; o ar tinha cheiro de mirtos e de bálsamos, e pelas estradas crianças alegres corriam por todo lado, brincando distraidamente com as borboletas. Mas a Andorinha voava cada vez mais alto, e ela ia ficando cada vez mais linda. Sob o verdor glorioso das árvores no entorno de um lago azul havia um palácio que tinha sido construído com estonteantes mármores brancos, desde tempos imemoriais. Videiras gigantes contornavam suas majestosas colunas; no topo havia muitos ninhos de Andorinhas, e num desses ninhos morava a Andorinha, que trazia a Thumbelina.
— “A minha casa fica aqui,” disse a Andorinha. “Porém, se quiseres escolher uma daquelas maravilhosas flores que crescem lá embaixo, então, eu levo você até ela, e você terá tudo o que quiser.”
— “Oh, isso vai ser muito bom,” exclamou ela, batendo suas maõzinhas.
Ali havia uma grande coluna de mármore, que estava caída no chão e havia se partido em três pedaços; e no meio dos destroços havia crescido flores brancas grandes e belas. A Andorinha voou até lá embaixo com Thumbelina, e delicadamente a colocou sobre uma das folhas largas. A pequerrucha então, ficou imensamente encantada!
No meio da flor estava um pequeno homenzinho, ele era tão branco e transparente como se tivesse sido feito de vidro; usava a mais delicada das coroas de ouro na cabeça, e tinha as asas mais reluzentes no ombro; e também não era muito maior que Thumbelina. Ele era o anjo das flores. Em cada uma das flores morava um pequeno homem ou uma pequena mulher daquele tamanho, mas aquele era o rei de todas elas.
— “Ó céus! como ele é lindo!” sussurrou Thumbelina para Andorinha.
O pequeno príncipe ficou muito assustado com a Andorinha; pois para ele a Andorinha era uma ave gigante, sendo ele tão pequenininho. Mas quando ele viu Thumbelina, ficou muito feliz; ela era a garota mais linda que ele conhecera. Foi aí que ele tirou a sua coroa de ouro, e a colocou na cabeça dela, perguntou como ela se chamava, e se ela queria ser sua esposa, e então, ela se tornaria a rainha de todas as flores. Ora, este homenzinho era do tipo muito diferente do filho do Sapo, e do Toupeira, mesmo usando um casaco de pele de veludo. Ela então disse “Sim” ao príncipe encantador.
E de cada flor surgiu uma dama ou um cavalheiro, tão lindos de se ver que ela ficou embevecida: e cada um trazia um presente para Thumbelina; mas o melhor presente foi um par de belas asas que tinha pertencido a uma grande mosca branca; elas foram bem presas nas costas de Thumbelina, e agora ela também podia voar de flor em flor. E então, a alegria era geral; e a Andorinha, que a tudo assistia lá do alto do seu ninho, cantou para eles a canção mais linda que eles podiam ouvir; porém, ela sentia uma tristeza muito grande no coração, porque ela gostava muito de Thumbelina, e não desejaria nunca ter se separado dela.
— “Você não se chamará mais Thumbelina!” disse o Anjo das Flores para ela; “esse não é um nome bonito, e você é muito linda para ser chamada assim — portanto, nós a chamaremos de Maia.”
— “Adeus, adeus!” disse a Andorinha, e ela voou para longe das regiões quentes novamente, bem distante da Dinamarca. Ali ela tinha um pequeno ninho que ficava em cima da janela do homem que gostava de contar histórias de fadas. Para ele ela cantava “Tuit-uit! Tuit-uit!” e foi dele que ficamos conhecendo toda essa linda história.


Adolescentes nos EUA se prostituem para fugir da fome, diz estudo

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Adolescentes nos EUA se prostituem para fugir da fome, diz estudo

Por comida, americanos nessa faixa etária também cometem assaltos e vendem droga


RIO - A prostituição e o crime são, em alguns casos, as únicas saídas encontradas por adolescentes em situação de insegurança alimentar nos Estados Unidos, segundo pesquisa revelada nesta segunda-feira pelo think tank americano Urban Institute.

O estudo qualitativo "Impossible choices", feito em parceria com a ONG Feeding America, entrevistou 193 adolescentes com idade entre 13 e 18 anos por três anos. Em todas as dez comunidades incluídas na pesquisa, foram citados casos de meninas que recorreram ao sexo como meio para obter dinheiro ou comida — fazendo das adolescentes as mais vulneráveis à exploração sexual.


Frequentemente, esta exploração ganha a forma do que os pesquisadores chamaram de "transactional dating", algo como encontros de transação, em que a adolescente faz sexo regularmente com alguém — muitas vezes um homem bem mais velho — em troca de refeições ou bens materiais. Ou seja, a prostituição não necessariamente envolve o dinheiro.

Entre os meninos, é mais comum o apelo a roubos e ao envolvimento com o tráfico de drogas. Em ambos os sexos, porém, há outras estratégias para combater a fome, como guardar as refeições escolares para o fim de semana, comer na casa de amigos e familiares e até ir para a prisão para garantir a alimentação.

Apesar de não ter caráter quantitativo, o estudo cita um levantamento feito pelo especialista Craig Gundersen que estima existirem, nos Estados Unidos, 6,8 milhões de adolescentes entre 10 e 17 anos com dificuldades para se alimentar suficientemente.

Em entrevista ao "The Guardian", uma das pesquisadoras, Susan Popkin, afirmou que as exploração sexual relacionada à fome, entre as adolescentes, foi uma surpresa. "Eu tenho feito pesquisa em comunidades de baixa renda por um bom tempo e tenho escrito extensivamente sobre as experiências de mulheres em comunidades pobres, além do risco da exploração sexual, mas isto foi novo", disse.

O apelo a estratégias arriscadas, segundo a pesquisa, acontece quando muitas outras estão esgotadas — as dificuldades em obter emprego têm associação direta, por exemplo. Há também a ligação com a pobreza familiar, em que os adolescentes, especialmente os com irmãos pequenos, se sentem responsáveis por colocar comida na mesa.

O estudo é concluído com recomendações ao governo, cuja atuação, no caso dos Estados Unidos, estaria focada prioritariamente na insegurança alimentar entre as crianças mais novas. Entre as sugestões a nível local e nacional, a curto e a longo prazo, estão o fortalecimento da assistência alimentar pelo governo e a facilitação do acesso a empregos.






Mulheres / Kelly LeBrock

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MULHERES
Kelly LeBrock
The Woman in Red 
(1984)
























Mulheres na praia / Greer Grammer

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Greer Grammer – Wearing Bikini on the Beach in LA













 




Nabokov / ‘Lolita’ ou o triunfo da liberdade e da beleza

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‘Lolita’ ou o triunfo da liberdade 

e da beleza

Poetas, escritores e filósofos falam das portas que a grande e controversa obra de Nabokov abriu para a literatura


WINSTON MANRIQUE SABOGAL
Madri 15 SET 2015 - 02:09 COT


“Lolita, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul” (“Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado” – em tradução de Sergio Flaksman). São as palavras mágicas com que Vladimir Nabokov abre o mundo de Lolita, um dos romances mais perturbadores e cativantes da literatura, e um clássico universal. Uma obra cuja beleza aumenta com o tempo. Como aumentam as dúvidas sobre se hoje, sessenta anos depois de sua primeira edição, seria publicada em um mundo que parece retroceder em certos aspectos. Mas, o que a literatura teria perdido se Lolita não tivesse existido?

Na longa luta entre a liberdade e o puritanismo, 'Lolita' está do lado da liberdade”, diz o poeta González Iglesias

Sua publicação hoje seria difícil, segundo alguns escritores, pensadores e críticos. Até mesmo sua condição de clássico cambalearia, explica o poeta Juan Antonio González Iglesias, “porque os inimigos da liberdade são muitos, e com um grande poder. Na longa luta entre a liberdade e o puritanismo, Lolita está do lado da liberdade”. Uma obra, segundo o filósofo Manuel Cruz, que “mostra que a aparência de liberdade e de tolerância sexual e amorosa em geral na qual vivemos não vem a ser outra coisa, no final das contas, que a substituição dos velhos tabus visíveis por outros novos, invisíveis por representar a obviedade emergente”. Nabokov, garante a escritora Marta Sanz, “convidou a refletir sobre o significado do obsceno e sobre nossa própria hipocrisia”.
Para além do desejo, mais para o lado do amor, rodeado de obsessão e dor, o protagonista do romance, um escritor chamado Humbert Humbert, torna público seu “pecado” de amar e desejar uma adolescente com a arte da literatura até criar, segundo o escritor Mario Vargas Llosa em 1987, uma “das mais sutis e complexas criações literárias de nosso tempo”.

Rejeitada por quatro editoras – só The Olympia Press, um pequeno selo editorial parisiense especializado em obras eróticas, se atreveu a publicá-la, em 15 de setembro de 1955–, três anos depois apareceu nos Estados Unidos.Lolita nasceu quase maldita. O próprio Nabokov (1899-1977) um dia lançou o original ao fogo e sua esposa, Vera, o resgatou; mais tarde, depois de chegar às livrarias, provocou uma onda de escândalo e acusações por desafiar tabus e pôr a sociedade ante o espelho de desejos obscuros. Sua popularidade aumentou quando Stanley Kubrick lhe fez justiça no cinema, em 1962, com roteiro do próprio escritor russo.
“Lo-lee-ta: the tip of de tongue taking a trip of three steps down the palate to tap, at three, on the teeth. Lo.Lee.Ta” (Lo-li-ta: a ponta da língua toca em três pontos consecutivos do palato para encostar, ao três, nos dentes. Lo. Li. Ta).

Lançou uma pergunta sobre se é mais obsceno, e até mais imoral, a atração por uma ninfeta ou o assassinato. Sobre se é mais imoral cometer essas ações ou mostrá-las se deleitando nelas”, explica Marta Sanz

A partir desse magistral e musical começo, a história de Humbert Humbert desliza por vários estágios de leitura onde se destaca o virtuosismo da linguagem e sua arquitetura. Nabokov, afirma Marta Sanz, “lançou uma pergunta sobre se é mais obsceno, e até mais imoral, a atração por uma ninfeta ou o assassinato. Sobre se é mais imoral cometer essas ações ou mostrá-las se deleitando nelas. Sobre se o obsceno é a vulgaridade de uma sociedade que acredita que o Redear’s Digest é cultura ou a sofisticação intelectual (maligna?) de um Humbert Humbert que no fundo se movimenta pelo ímpeto lascivo de seus olhos de macaco. Nabokov talvez se conecte com essa sensibilidade estética tão contemporânea que mantém que a provocação pode constituir uma ação moral sem cair no moralismo. Tudo isso se sugere por meio de uma palavra sensual na qual importam tanto as unhas pintadas dos pés da ninfeta como o som de seu nome: Lo-li-ta. Nabokov sabe que é impossível dizer o mesmo de outra maneira e que a textura de sua linguagem é tão atraente, provocadora e excitante como o que nos está contando. De fato, é o que nos está contando: a fusão da ética e da estética em função do princípio libertino do prazer”.
Mas Lolita desatou um escândalo moral, quando justo o que Nabokov buscava era distanciar-se da moral, afirma Javier Aparicio Maydeu, crítico literário e especialista no autor russo. O romance é muito mais que esses adjetivos envenenados ao se tornar um elo na sensibilidade do século XX. Sobretudo, acrescenta Aparicio Maydeu, “é o triunfo do romance que não persegue a militância moral sustentada pelo romance naturalista do século XIX (do qual parece zombar). Lolita parece extirpar a ética do romance e, sem lugar para dúvidas, conquista para o romance moderno a ambiguidade (do narrador) e o protagonismo da linguagem acima da trama em si”.
“Ela era Lo, apenas Lo, pela manhã, um metro e quarenta e cinco de altura e um pé de meia só. Era Lola de calças compridas. Era Dolly na escola. Dolores na linha pontilhada. Mas nos meus braços sempre foi Lolita”.
A partir daí se atribuiu esse nome nas referências àquelas pré-adolescentes tão sedutoras quanto inocentes de seu próprio milagre de atração sobre alguns homens. Vladimir Nabokov não ficou de todo contente com a popularidade e algumas interpretações de sua obra. Em uma entrevista a Bernard Pivot, da televisão francesa, disse: “Fora do olhar maníaco do senhor Humbert não há ninfeta. Lolita, a ninfeta, só existe através da obsessão que destrói Humbert. Esse é um aspecto essencial de um livro singular que tem sido distorcido por uma popularidade artificial”.

O romance mostra que a aparência de liberdade e de tolerância sexual e amorosa em geral na qual vivemos não vem a ser outra coisa, no final das contas, que a substituição dos velhos tabus visíveis por outros novos”, diz Manuel Cruz

A luta dessa história no romance é entre a obsessão presente do protagonista e uma recordação e sonho frustrados que se negam a morrer; e, na vida real, entre a liberdade e o puritanismo, entre a ética e a estética. “Não é unicamente um prazer intelectual para cada leitor”, afirma o poeta Juan Antonio González Iglesias. Esse mundo que Nabokov cria – agrega o poeta – “alarga os limites do nosso mundo. Lolita é um romance de estirpe poética, tem a beleza, a sensibilidade e a perfeição, mas também a tensão ética e política de um acontecimento que é de todos. Na longa luta entre a liberdade e o puritanismo, Lolita está do lado da liberdade. Seu impacto universal é em direção ao futuro, embora também repercuta no passado. Permite reler a experiência humana de outra maneira”. Não duvida Gonzáles Iglesia em considerá-lo um clássico com força para modificar o mundo. Para o que contribuiu, acrescenta, a vocação formal de Nabokov, e também o fato de que ele o escreveu fora de seu país e fora de sua língua materna: “Expõe um arquétipo e por isso pertence à história da literatura. À universal, não à norte-americana nem à russa, nem deveria incidir somente no superficial da questão erótica. Felizmente, Lolita já é um clássico. Eu me pergunto se chegaria a sê-lo caso fosse publicado agora”.
Em tal caso, talvez a respiração de alguns voltasse a se alterar. Quando a verdade, explica o filósofo Manuel Cruz, é que “a grande virtude do livro é ter posto em evidência, para além dos subterfúgios do desejo, o modo obscuro e invisível em que nossas sociedades respondem a ele. O catálogo de figuras dos distintos poderes que (cada uma à sua maneira) atemorizam o protagonista, os fantasmas que o ameaçam convertê-lo ante si mesmo e ante os demais na materialização das diferentes figuras da maldade (criminoso, pervertido, louco...) mostram que a aparência de liberdade e de tolerância sexual e amorosa em geral na qual vivemos não vem a ser outra coisa, no final das contas, que a substituição dos velhos tabus visíveis por outros invisíveis por representar a obviedade emergente. Ou alguém se atreveria a escrever hoje um livro no qual o autor tornasse seu o olhar amoroso de Dante para Beatriz?”
Tesouros perdidos ou secretos. Um grito que se nega a ser silenciado. O resultado, segundo o escritor Colm Tóibín, “é como se Nabokov inserisse uma música artística e requintada na vida norte-americana. Encontrou um tom astuto, cômico, cheio de beleza e desejo para pôr no país que estava menos disposto a tolerar tudo isso. O fato de que Lolita era norte-americana e o romance se passasse nos subúrbios e estradas abertas desse país criou a graça do estilo, o risco obscuro nas sentenças, e a tornou mais sedutora”.
Lolita é uma matrioska na realidade e na ficção. Nas mãos dos leitores surgem múltiplas leituras, mas sempre beleza. Sob o romance, em sua origem, está O Feiticeiro, um relato que Nabokov escreveu em 1939 e que manteve entre sombras até um par de anos depois da publicação de Lolita. Ao mesmo tempo, essa ninfeta da ficção tem uma precursora, o fantasma que persegue Humbert Humbert chamado Annabel Leigh, aquele amor adolescente, correspondido, mas frustrado no limite da realização. E Annabel, por sua vez, vem de um tempo muito distante. Nasce em 1849 pelas mãos do último poema completo que Edgar Allan Poe escreveu: Annabel Lee:
Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.
(...)
Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.
(tradução de Fernando Pessoa)
E à beira-mar foi a última vez que Humbert Humbert viu seu primeiro amor, Annabel Leigh, que logo se transformaria em um desejo nocivo. Aquela história de amor e paixão de Poe com sua música de elegante tristeza e orfandade, Vladimir Nabokov a faz ressoar em seu protagonista que sonha com sua ninfeta e seu amor murchado antes de florescer e, sobretudo, deseja ser desejado. “Simplesmente gosto de compor enigmas com soluções elegantes” disse seu autor. E deixou clara sua concepção da literatura: “uma obra de ficção só existe na medida em que me proporciona o que chamarei, pura e simplesmente, de prazer estético”.
E é assim que na confissão de seu escritor Humbert Humbert se lê: “Para dizer a verdade, é bem possível que a atração que a imaturidade exerce sobre mim resida não tanto na limpidez da beleza infantil, imaculada, proibida, quanto na segurança de uma situação em que perfeições infinitas preenchem o abismo entre o pouco concedido e o muito prometido...”


Eliane Brum / Como se fabricam crianças loucas

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Como se fabricam crianças loucas

Os manicômios não são passado, são presente. Uma pesquisa realizada no hospital psiquiátrico Pinel, em São Paulo, mostra que, mesmo depois das novas diretrizes da política de saúde mental no Brasil, crianças e adolescentes continuaram a ser trancados por longos períodos, muitas vezes sem diagnóstico que justificasse a internação, a mando da Justiça. Conheça a história de Raquel: 1807 dias de confinamento. E de José: 1271 dias de segregação. Ambos tiveram sua loucura fabricada na primeira década deste século


ELIANE BRUM
17 MAR 2014 - 11:03 COT


Em uma noite de novembro de 2007, a psicóloga Flávia Blikstein escutou de uma menina duas perguntas. E descobriu que não tinha respostas. Flávia trabalhava num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) infantil, em São Paulo, e encontrava-se na ambulância para levar a garota para sua primeira internação psiquiátrica. Maria, como aqui será chamada, tinha 14 anos. Era negra, alta e magra. Falava pouco, frases curtas. Gostava de brincar de boneca e de desenhar. Às vezes pintava as unhas, arrumava o cabelo, anunciando a adolescência. Maria se molhava o tempo todo, em pequenos rituais. Abria a torneira, fazia uma conchinha com as mãos e molhava os pés, as pernas, os braços. Fazia isso em qualquer lugar, causando vergonha à mãe. Talvez Maria estivesse esculpindo com a água os limites do próprio corpo. Quando fez a primeira pergunta à Flávia, ela ainda tinha as pontas dos dedos úmidas, e o seu olhar também era molhado:
- Por que eu vou ficar aqui?
Flávia descobriu que não tinha resposta.
Maria fez então a segunda pergunta:
- Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?
Flávia descobriu que não tinha resposta também para essa. Não tinha resposta porque, ao contrário do que costuma acontecer quando crianças e adolescentes nos mostram a face do abismo, ela tinha escutado as perguntas. Escutado mesmo. A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica. Talvez Maria intuísse que esse passo poderia ser longo. Talvez Maria adivinhasse que os dentes do sistema estavam à sua espera, logo ali.
Flávia abraçou Maria. E pediu desculpas por não saber responder. Maria entrou, carregando olhos molhados e pontos de interrogação.

A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica

O que Maria perguntou à Flávia, perguntou a todos nós: por que, no século 21, crianças e adolescentes brasileiros, a maioria filhos de famílias pobres, continuam a ter suas vidas mastigadas num hospital psiquiátrico. A “criança louca” fez aos normais a pergunta mais lúcida: por que a condenavam a uma existência de manicômio. A habitar um mundo de dor, vagando entre paredes, desvestindo a si mesma para vestir um uniforme, sem direito ao desejo. Por que lhe negavam a humanidade tão cedo.
Flávia não pôde esquecer as perguntas, menos ainda a sua falta de respostas. Dedicou-se a buscá-las. Encontrou-as no arquivo do Núcleo da Infância e da Adolescência (NIA) do Centro de Atenção Integrada em Saúde Mental (CAISM) Philippe Pinel. O Pinel é uma das instituições de referência para internação de crianças e adolescentes com problemas mentais no estado de São Paulo. Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Fechou-se na pequena sala bordada de estantes durante todos os sábados de um ano inteiro. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009. Destes, 79% das crianças e adolescentes haviam sido internados apenas uma vez. Os 21% restantes tiveram de duas a sete reinternações. Alguns casos, que continuaram a voltar ao Pinel, ela acompanhou também nos anos de 2010 e 2011. Flávia queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado.
O arquivo do Pinel ficava logo abaixo da enfermaria das crianças e adolescentes. Enquanto pesquisava, Flávia podia ouvir os gritos. Percebeu, porém, que mais do que gritos havia um silêncio longo. Um silêncio, nas suas palavras, “estranho e profundo, um silêncio que não imaginamos num lugar cheio de crianças e adolescentes”. Dentro do arquivo, não. Os prontuários contavam histórias. Ainda que a voz de meninos e meninas ressoasse mais nas ausências, nas entrelinhas, os prontuários diziam de infâncias aniquiladas numa vida de manicômio. E mostravam por que caminhos a fabricação de crianças loucas é uma verdade profunda do Brasil. Flávia chamava o arquivo de “sala das almas”. E as almas falavam.
Duas crianças, que se transformaram em adolescentes no hospital psiquiátrico, contaram histórias que poderiam ilustrar livros escabrosos sobre os manicômios do passado, mas que se passaram na primeira década desse século. Aqui, elas serão chamadas de José e de Raquel. José permaneceu confinado por 1271 dias – ou três anos e cinco meses. Raquel, por 1807 dias. Ficou trancada dos 11 aos 16 anos – e de lá foi transferida para outra instituição psiquiátrica. José e Raquel estavam segregados no Pinel, a mando da Justiça, sob reiterados protestos da equipe técnica. Foram depositados como coisas no Pinel porque ainda é este o destino dado a crianças como eles no Brasil.
Por quê?

Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009

É preciso prestar muita atenção às respostas que Flávia encontrou. Sua escuta de três mil horas dentro do arquivo transformou-se numa dissertação de mestrado em psicologia social na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Somando-se a trabalhos fundamentais de outros pesquisadores do tema, tanto em São Paulo como em vários estados do Brasil, a investigação mostra por que os manicômios persistem apesar das diretrizes da política de saúde mental e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A Lei nº 10.216, de 2001, orientada pela reforma psiquiátrica, prioriza o atendimento em rede, em serviços inseridos na comunidade, perto da família, e determina que a internação só pode ocorrer depois de esgotados todos os recursos extra-hospitalares. Não é o que acontece em casos demais.
“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970 e conquistou avanços significativos nesse século. A pesquisa mostra, porém, que mesmo instituições e profissionais que tentam fazer diferente são seguidamente vencidos pelas engrenagens e pela escassez de serviços públicos de base. Na prática, ainda hoje, é de manicômio e de vida manicomial que se trata em uma parte significativa dos casos, uma realidade só possível pelo descaso quase absoluto da sociedade com o destino dessas crianças, em geral filhas de famílias pobres. Ao fazer o arquivo morto falar, Flávia constrói respostas que precisam ser escutadas se quisermos, de fato, estancar o crime de fabricar crianças loucas – e, muitas vezes, também o de conseguir enlouquecê-las.
Raquel nasceu em 1994. A mãe estava presa por tráfico de drogas, não porque era chefe de uma organização criminosa, mas porque vendia uma pequena quantidade para sustentar seu próprio vício. Esse destino é comum nos presídios do país, é também gerador de órfãos de mães vivas. Pobre demais para dar conta dela, a avó colocou Raquel num abrigo aos cinco anos. A menina é de imediato descrita como “agressiva”. E, por esse motivo, é afastada das outras crianças. Passa a morar com o que se chama de “mãe social”, isolada numa casa nos fundos do abrigo. A escolha, como mostra Flávia, evidencia que, desde sempre, a resposta à agressividade de Raquel é a exclusão. Obviamente, também não deu certo. De abrigo em abrigo, Raquel virou aquela que “não dava certo” em abrigo nenhum.
Talvez valesse a pena perguntar se a agressividade, ao se olhar para o contexto e as circunstâncias, não era o principal traço de sanidade de Raquel. Mas o direito à história é o primeiro a ser arrancado das “crianças loucas”. Ela já tinha quase tantos rótulos quanto anos de vida: filha de presidiária, abandonada, agressiva, não dá certo... Raquel só era vista por estigmas e fragmentos.

Ela queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado

Negra como Maria, ela foi internada pela primeira vez em 2005, aos 11 anos. Entrou no sistema por ordem da Justiça. Antes de seguirmos o seu destino, é crucial entender as duas formas de entrada nas instituições psiquiátricas, identificadas pela pesquisa. Nelas se encontra uma das chaves para compreender a fabricação das crianças loucas no Brasil atual. Assim como os caminhos pelos quais é mantida viva a função histórica dos manicômios como lugar de segregação daqueles que são decodificados como perigosos para a ordem social, ainda que sejam apenas pobres e abandonados.
Em pouco mais da metade dos casos – 55% – o pedido de internação psiquiátrica foi feito por familiares e por diferentes serviços da rede de saúde. Nos outros 45%, crianças e adolescentes foram internados por ordem judicial. Estes são os dois caminhos de entrada nos hospitais psiquiátricos. A pesquisa mostrou, porém, algumas diferenças fundamentais para compreender o problema: no período pesquisado, a Justiça internou mais cedo, por mais tempo e mais vezes. A maioria dos casos era de adolescentes, mas as crianças respondiam por 20% das internações por ordem judicial. Pela via da rede de saúde, menos de 6% eram crianças. Por ordem judicial, o tempo médio de internação era quase o dobro (55 dias contra 30). A Justiça também foi responsável por 92% das internações com duração maior do que 150 dias. Entre os 14 casos que sofreram internações de quatro a sete vezes, 12 tinham sido confinados por ordem judicial.
Entre eles, Raquel. Dos 11 aos 16 anos, ela foi internada seis vezes no Pinel. A queixa da primeira vez: “Paciente institucionalizada há oito meses (nome de outro hospital), com transtorno de comportamento, heteroagressiva (agressividade dirigida a terceiros), em tratamento ambulatorial pouco resolutivo”. Depois de seis dias, o Pinel deu alta e a menina foi encaminhada a um abrigo. Oito dias mais tarde, ela foi novamente internada por ordem judicial: “Paciente portadora de transtorno de conduta grave. Uma vez no abrigo, voltou a ficar agressiva. Crítica seriamente comprometida, ameaçadora”. Outros 19 dias de internação, e o Pinel pediu à justiça que ela tivesse alta. Passada uma semana, o pedido foi atendido, e ela voltou ao abrigo. Mais três dias e Raquel de novo foi internada no Pinel por ordem judicial: “Ao retornar ao abrigo volta a apresentar quadro importante de liberação de agressividade e falta de controle de impulsos”. Raquel ficou trancada no Pinel por 1004 dias.
Nessas três primeiras vezes, tornou-se evidente que a justiça internava e o hospital liberava, porque não havia razão para manter Raquel confinada. Documentos anexados ao prontuário mostram que a direção da instituição enviou diversos relatórios à justiça, tanto informando da alta médica da paciente quanto pedindo encaminhamento a um abrigo e tratamento ambulatorial. Num dos documentos, a direção afirma: “Nosso hospital está fazendo o papel de Abrigo para esses adolescentes. Sabedores dessa ilegalidade pedimos com urgência uma resolução para esse problema”. E, em outro ofício: “Atualmente a adolescente continua residindo na enfermaria para tratamento de pacientes agudos, encontra-se longe da escola e com enormes prejuízos psicológicos e sociais”.

“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970

A cada três meses, o Pinel mandou ofícios à justiça. Só foi atendido depois de quase dois anos e nove meses. Mas a vida de Raquel fora do hospital durou apenas uma semana. Mais uma vez ela foi internada na instituição. O motivo: “Evolui com episódios recorrentes de agressividade, fugas necessitando atendimento em unidades de emergência. Há dois dias em acompanhamento no CAPS sem aderência ao tratamento”. Depois de mais 413 dias de internação, Raquel fugiu do hospital. Voltou espontaneamente dois dias mais tarde. Para onde mais ela iria, já que o longo período de confinamento esgarçou ainda mais os frágeis vínculos familiares e a impediu de criar novos?
Raquel permaneceu internada mais 244 dias, antes de ser encaminhada a outro abrigo. Quinze dias fora do hospital, e a justiça mandou-a de volta: “Jogou fora seus remédios, quebrou o vidro da brinquedoteca, feriu-se, pegou o telefone para se enforcar e fugiu para uma cidade vizinha dizendo que ia procurar seus avós”.
Na sexta vez, está registrado no prontuário: “A paciente verbaliza que a maior dificuldade que enfrentou no retorno ao abrigo foi uma sensação de inadequação na convivência com adolescentes sem problemas psiquiátricos; infelizmente, criou-se um vínculo inadequado iatrogênico (provocado pela própria prática médica) de segurança com o ambiente de internação, o que se configura como Hospitalismo”.
Em outras palavras. Raquel não sabia mais viver fora do hospital psiquiátrico, seus vínculos estavam dentro da instituição. Se tinha a algum afeto, era ali. Era no hospital que ela sabia como se comportar, identificava uma rotina, fazia amigos entre outras crianças e adolescentes como ela ou realmente doentes. Considerava profissionais de saúde como parentes. E, mais tarde se saberia, quebrava coisas e agredia pessoas quando era mandada para o abrigo porque sabia que assim voltaria àquele que era o único lugar parecido com um lar que tivera na vida.

No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico

Nessa época, a direção do Pinel mandou mais um ofício à justiça: “Aproveito a oportunidade para dizer da indignação dessa equipe técnica que, por diversas vezes, acionou o judiciário solicitando a desinternação desses adolescentes que, na ocasião, precisavam apenas de um abrigo para moradia e dar continuidade ao atendimento ambulatorial, tendo assim seu direito constituído”.
No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico.
O diagnóstico que sustentou a condenação de Raquel a uma vida manicomial é bastante revelador: “transtorno de conduta”. Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), “os transtornos de conduta são caracterizados por padrões persistentes de conduta dissocial, agressiva ou desafiante. Tal comportamento deve comportar grandes violações das expectativas sociais próprias à idade da criança; deve haver mais do que as travessuras infantis ou a rebeldia do adolescente e se trata de um padrão duradouro de comportamento (seis meses ou mais)”. Essa “patologia”, assim como outras que compõem a CID, é contestada por parte dos psiquiatras, psicanalistas e psicólogos, assim como por profissionais de outros campos do conhecimento. Mas, ainda que se aceite que essa doença de fato existe, o tratamento recomendado é inserção comunitária – e não asilamento.
Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos. Tanto na internação pela via da rede de saúde como na internação por ordem judicial, o principal diagnóstico é esquizofrenia. Mas o “transtorno de conduta” tem aumentado. Numa comparação com uma pesquisa anterior, na qual Julia Hatakeyama Joia analisou os prontuários do Pinel entre fevereiro de 2001 e agosto de 2005, Flávia constatou que os chamados “transtornos do comportamento e transtornos emocionais” – dos quais “transtornos de conduta” correspondem a 75% dos casos – cresceram como motivo de confinamento. Em 2002, eram causa de 5,26% das internações. Passaram para 7,14% em 2005. E alcançaram 15,2% das ocorrências em 2009. “Em muitos casos, é diagnosticado em crianças com episódios de descontrole e agressividade, sem que exista uma análise sobre sua história e contexto de vida”, afirma a psicóloga. Outro dado comparativo de extrema relevância é que, entre 2001 e 2004, a proporção de internações no Pinel por ordem judicial era de 23% do total. De 2005 a 2009 saltou para 45%.

Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos

O “transtorno de conduta” é bem mais recorrente na internação por ordem judicial do que na internação pela via da rede de saúde. É o diagnóstico de um quarto das internações com duração maior do que 150 dias e por mais de um terço dos casos de crianças e adolescentes internados de quatro a sete vezes. É o rótulo de Raquel – e também o de José. Meninos representam quase 80% das crianças e adolescentes internados, um dado cujas razões precisam ainda ser melhor compreendidas.
José tinha 10 anos quando deu o primeiro passo para dentro do Pinel, por ordem judicial. Tinha passado, segundo o relatório da instituição, por “maus tratos, negligências e privação afetiva”. Apresentou “comportamentos desafiadores e transgressores, o que resultou em rejeição e abandono familiar, principalmente de sua mãe”. A mãe decidiu entregá-lo para o pai, na Bahia. No dia da viagem, José recusou-se a ir. Ele não queria se separar da mãe. Para não ser obrigado a viajar, por duas vezes tentou se jogar diante dos carros, na rua. A “crise de agitação” levou à sua primeira internação. A duração: 623 dias.
Quando teve alta, José foi encaminhado a um abrigo. Permaneceu apenas três dias antes de ser internado novamente. Dessa vez, ficou trancado por 255 dias. José fugiu. Para onde? Para a casa de mãe. Mais uma internação, por “agitação psicomotora com intensa heteroagressividade, baixa tolerância à frustração, sem crítica, e risco de vida”. Dessa vez, ficou 84 dias na instituição antes de fugir novamente. Para onde? Para a casa da mãe. Na quarta e última internação, ele permaneceu 309 dias no Pinel. Foi então encaminhado para um abrigo. De onde fugiu. Para a Bahia, em busca de um lugar e de um afeto.
No total, José ficou 1271 dias trancado no Pinel: três anos e cinco meses. Sobre José e Raquel, a equipe técnica do hospital enviou um ofício à Justiça, em 2008: “(...) Estão em alta médica, mas permanecem nesta enfermaria psiquiátrica para tratamento de pacientes com transtornos mentais agudos, privadas de ter uma vida digna, por não terem retaguarda familiar e não existirem vagas em abrigos”. Sobre esse destino, Flávia afirma: “As internações são motivadas por uma combinação complexa, que resulta numa situação de vulnerabilidade. A resposta da internação psiquiátrica, além de redutora de complexidade, é ela mesma produtora de maior sofrimento. A internação por ordem judicial revela uma concepção sobre a infância e a adolescência pautadas no medo e no perigo. Propõe uma resposta única a todas as situações, sem considerar diferenças, singularidades e contextos. Reduz crianças e adolescentes ao status de paciente psiquiátrico perigoso, produzindo sua cronificação”. É assim que se fabricam crianças loucas.
Vale a pergunta: fugir pode ter sido um ato de sanidade de José, na tentativa de não ser enlouquecido? De algum modo, apesar de tudo e de todos, ele parece acreditar que existe um lugar para ele, um lugar com afeto. José, Raquel e Maria nos mostram que não há desamparo maior do que o de uma criança num manicômio. Ninguém está mais sozinho nesse mundo do que José, Raquel e Maria. Expostos a uma sociedade que, além de não protegê-los, os enlouquece. Eles fogem, como José, eles quebram tudo, como Raquel, eles fazem perguntas, como Maria. Mas estão sozinhos. E cada um de seus atos de resistência é mais um carimbo de sua suposta loucura num arquivo morto.

O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola

Ao analisar os prontuários, Flávia conseguiu identificar claramente as diferenças entre a internação via rede de saúde e a internação por ordem judicial. Essas são conclusões cruciais do trabalho, porque apontam o que funciona e o que não funciona, apontam saídas. Na rede de saúde, a maior parte dos encaminhamentos é feita pela emergência de hospitais, o que não é o melhor percurso. Apenas 8% são enviados para internação por Unidades Básicas de Saúde ou por CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) infantil, que deveriam ser a porta de entrada para crianças e adolescentes com sintomas de doenças mentais. Esses dados demostram a falta desses serviços, causando desamparo na população que necessita de assistência pelo SUS. Em vez de começarem o tratamento pela rede básica, inserida na comunidade, o iniciam pelo fim e por aquilo que é uma exceção necessária num mínimo de casos: a internação. A hipótese de Flávia é de que, se houvesse mais serviços comunitários de saúde mental, como está previsto na legislação, é provável que a necessidade de internação fosse bem menor. Em vez do hospital psiquiátrico, uma rede articulada, com investimento maior em equipes de saúde mental, na capacitação e implantação do Programa de Saúde da Família e de centros de atenção psicossocial. “A patologização das crianças em situação de vulnerabilidade social evidencia a precariedade da rede de atenção e cuidado, e também a insuficiente articulação entre as políticas públicas nos campos da educação, saúde, habitação e lazer”, afirma.
A diferença é clara na análise dos dados. Nos casos encaminhados pelos Centros de Atenção Psicossocial, a média de dias de internação é mais baixa do que pelos outros caminhos. Quando crianças e adolescentes são cuidados pelos CAPS depois da alta, apenas 3% são reinternados. “Isso mostra que os serviços comunitários funcionam, mas são em número insuficiente”, afirma Flávia. “Nos pacientes encaminhados pela rede de saúde, o hospital funciona como enfermaria de crise. A maioria é de adolescentes de 15 a 17 anos, em seu primeiro surto psicótico, que são cuidados e liberados. Já na internação por via judicial, o hospital funciona como instituição de asilamento.”
O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola. A doença, se de fato existe, deve ser compreendida como uma das várias características – e não como a verdade única sobre aquela criança e adolescente. Mesmo a internação, se for necessária, deve ser entendida como uma parte da história – e não como a história inteira. A internação é um momento, não um destino.
Flávia permanecia das 10h até as 21h de cada sábado na sala das almas do Pinel. Numa noite, estava tão mergulhada nos prontuários que se esqueceu da hora e se atrasou para sair. O guarda do portão recusou-se a deixá-la ir. Eram as regras. Ele não estava ali para pensar sobre elas, mas para cumpri-las. E Flávia soube o que era estar entre muros – e não ser escutada. Depois de um tempo que pareceu largo demais, Flávia conseguiu provar que era uma psicóloga, fazendo um trabalho de pós-graduação para a PUC. Acredita que o fato de ser branca, loira e de olhos azuis possa ter ajudado na sua “soltura”. Mas, ao abrir o portão, o segurança alertou: “Na próxima vez, fica”. Por um momento, trêmula, Flávia teve uma tênue aproximação do que sentiram Raquel, José e Maria, apenas três entre as centenas de “crianças loucas” fabricadas nesse século.
Ao final de sua estadia no arquivo morto que ela descobriu ser vivo, Flávia finalmente tinha as respostas para Maria.
1) Por que eu vou ficar aqui?
- Porque as instituições que compõem a rede de atendimento à criança e ao adolescente trabalham de forma desintegrada e não conseguem atender às suas necessidades.
2) Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?
- As crianças e os adolescentes que tiveram seus destinos produzidos ativamente pela desresponsabilização e pelo abandono.
Maria perguntou. Flávia escutou. Escutou de fato não quando a ouviu, mas quando fez o movimento de buscar as respostas. Elas estão aí, mas só provocarão mudança se o Estado, os governos e a sociedade as escutarem. Se nós as escutarmos. É, afinal, de escuta que se trata.
Flávia desconhece o paradeiro de José. Raquel foi libertada ao completar 18 anos. Mas o que há para Raquel depois do que fizemos com ela? É possível, é moral, é decente dizer à Raquel: vá estudar, vá trabalhar, vá construir uma vida? “É uma marca tão profunda que pessoas como Raquel, mesmo saindo da instituição, continuam institucionalizadas”, diz Flávia. “A institucionalização parece uma grande máquina que suga a potência humana, criando seres humanos sem desejo. A institucionalização é a patologia mais grave da saúde mental.”
Aos 19 anos, Raquel hoje perambula pelas ruas e albergues de São Paulo, ao redor das instituições. Às vezes declara-se “louca” e é internada por curtos períodos. Raquel sempre pergunta pelo seu melhor amigo:
- Onde está José?

Eliane Brum / A ditadura que não diz seu nome

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A ditadura que não diz seu nome

O imaginário sobre a Amazônia e os povos indígenas, forjado pelo regime de exceção, é possivelmente a herança autoritária mais persistente na mente dos brasileiros de hoje, incluindo parte dos que estão no poder. E a que mais faz estragos na democracia



ELIANE BRUM
31 MAR 2014 - 07:41 COT


“Quando se quer fazer alguma coisa na Amazônia, não se deve pedir licença: faz-se.”
A declaração é do gaúcho Carlos Aloysio Weber, ex-comandante do 5o Batalhão de Engenharia e Construção, um dos primeiros a instalar-se na Amazônia na ditadura civil-militar. Em 1971, ele foi entrevistado para um projeto especial da revista Realidade sobre a Amazônia. O repórter fez ao coronel, apresentado como “lendário” em Rondônia, a seguinte pergunta: “Como é possível fazer as coisas na Amazônia e transformar a região?”. O coronel respondeu:
- Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo licença, chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam licença aos espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo o que fizemos não tivesse dado certo, eu estaria na cadeia, velho.
É uma declaração de sentidos explícitos – pelo tom em que foi dita, pela certeza da impunidade, pelo orgulho da falta de limites. Pela forma como o coronel vê a Amazônia como território a ser invadido e dominado pela força. O que a ditadura fez na Amazônia, tão longe dos centros de poder e das vozes de resistência, e o que fez com os povos indígenas, ainda precisa ser investigado com muito mais profundidade. Os horrores que já foram descobertos podem ser só a superfície. Mas, se o passado pede luz, o presente precisa ser iluminado com urgência.

A ditadura civil-militar enraizou no imaginário dos brasileiros a visão de que a floresta amazônica é um território-corpo para exploração

Há vários entulhos autoritários corroendo nossos dias, como a Polícia Militar (que, se tem uma história anterior ao golpe de 1964, ganhou mais poderes na ditadura e os mantêm na democracia) e o “auto de resistência” (que serve para a polícia justificar a execução de suspeitos ou desafetos). Mas é no olhar tanto sobre a Amazônia quanto sobre os povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas que o Estado autoritário persiste com mais força e menos resistência na mente da maioria dos brasileiros. Persiste da forma mais perigosa, porque traveste como verdade aquilo que é apenas uma imagem a serviço de interesses políticos e econômicos específicos. Talvez em nenhum outro campo o regime de exceção tenha conquistado tanto êxito ao impor seu ideário. E o mantê-lo na democracia.
A ditadura civil-militar enraizou no imaginário dos brasileiros a visão de que a floresta amazônica é um território-corpo para exploração. Se a lógica do explorador/colonizador norteou historicamente a “interiorização” do país, é na ditadura que ela ganha um pacote ideológico mais ambicioso. As peças de propaganda que o regime produziu continuam vivas, mesmo para aqueles que nasceram depois dela, como os slogans “Integrar para não entregar” e “Terra sem homens para homens sem terra”. É na ditadura que é cimentada a ideia da Amazônia como “deserto verde”, ignorando toda a riqueza humana, a diversidade cultural e biológica que lá existia, ignorando a vida. A disseminação dessa fantasia é tão bem sucedida que se torna verdade. E se torna uma verdade que continua verdade após a redemocratização. Tão verdade que cria uma realidade paradoxal: uma ex-guerrilheira, presa e torturada pelo regime, é quem, na democracia, leva adiante o modelo de desenvolvimento da ditadura para a Amazônia.
É primeiro no governo Lula, e com mais força e empenho a partir da posse de Dilma Rousseff, que grandes obras previstas pelos militares, como a hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu – a mais polêmica, mas não a única – são impostas aos povos da floresta. O conturbado processo que forçou a construção de Belo Monte, entre outras arbitrariedades violou tanto a Constituição quanto tratados internacionais. A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assegura aos indígenas o direito de serem ouvidos em empreendimentos que vão afetar seu modo tradicional de vida – e não foram. Outras hidrelétricas estão em curso, com grande resistência de povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, como as usinas previstas para o rio Tapajós, no Pará.

Uma ex-guerrilheira, presa e torturada pelo regime, é quem, na democracia, leva adiante o modelo de desenvolvimento da ditadura para a Amazônia

É nesse governo eleito que a Força Nacional baixa sobre as comunidades tradicionais que vivem há séculos na área dos megaprojetos com a justificativa, entre outras, de garantir a segurança dos pesquisadores que farão o inventário socioambiental. Na prática, é usada para reprimir a resistência legítima desses povos, cujos direitos são amparados pela Constituição. É na democracia que grandes empresas financiadas pelo dinheiro público do BNDES executam obras que alteram o ecossistema regional sem cumprir suas obrigações, na forma de condicionantes, causando estragos irreversíveis e aniquilando vidas, como se viu agora na enchente histórica do rio Madeira.
É também nesse período democrático que um instrumento criado na ditadura, a “Suspensão de Segurança”, tem sido usado para garantir a continuidade dos megaempreendimentos, como foi denunciado no último 28 de março na Organização dos Estados Americanos (OEA). O instrumento permite a tribunais superiores anular decisões judiciais de instâncias inferiores, independentemente do mérito, se as cortes entenderem que as sentenças representam risco de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas”. O mecanismo controverso tem sido usado para derrubar decisões favoráveis a comunidades afetadas por grandes obras, como Belo Monte e a estrada de ferro de Carajás.
E a maioria dos brasileiros não estranha – ou estranha muito pouco – essa versão do “Brasil Grande” da ditadura que se consolida com outros nomes na democracia. Não decodifica essa violência como violência, não decodifica o autoritarismo como autoritarismo. O mais perigoso é sempre aquilo que não detectamos como perigoso, aquilo que se naturaliza como inevitável – e na Amazônia a violência de Estado tornou-se natureza.

O mecanismo autoritário da ‘Suspensão de Segurança’ tem sido usado para derrubar decisões favoráveis a comunidades afetadas por grandes obras

Poderia ser uma surpresa o fato de o mito amazônico forjado na ditadura persistir na democracia. Mas não chega a ser, porque é esse mito, convertido em verdade única, que permite que a Amazônia siga sendo tratada como objeto de espoliação, seja pelo Estado, seja pela iniciativa privada. Um corpo a ser violado, à disposição de exploradores de passagem, sejam eles técnicos do governo, políticos de amplo espectro partidário, grileiros, madeireiros, mineradores e empreiteiros. Quem nesse território permanece, nele nasce, tem raízes e constrói memória torna-se um obstáculo, como os povos indígenas. Um não-ser, como os ribeirinhos e quilombolas, os invisíveis entre os invisíveis. Um obstáculo não ao desenvolvimento, como se repete à exaustão, mas à manutenção desse mito – à continuidade do ideário que legitima, há décadas, a destruição da floresta e dos povos da floresta para acomodar os interesses dos centros de poder.
Esta é uma entre várias razões para que a afirmação de pertencimento dessas populações seja vista como ilegítima, já que a floresta não seria terra para a vida, mas para a exploração e o uso. Como reivindicar a construção de sentidos naquela que é objeto de passagem e de dilapidação? A Amazônia serve ao centro, numa lógica que ainda obedece, na segunda década do século 21, aos preceitos do sistema colonial, na qual a periferia serve à matriz.
Para muitos, incluindo burocratas do governo instalados em ministérios como o de Minas e Energia, a Amazônia é apenas uma fonte de matérias-primas e de energia para as grandes indústrias que produzem para exportação. Tem sido, também, uma fonte de pagamento de compromissos não pronunciados de campanha, na forma de grandes obras financiadas pelo BNDES. A floresta é também aquela que pode ser derrubada para expandir a fronteira agropecuária, num momento em que os ruralistas constituem a maior bancada suprapartidária, em um Congresso que se pauta pela chantagem, e alcançam níveis inéditos de influência em um governo que assegura apoio pela barganha. É ainda uma reserva simbólica para unir o Brasil que a desconhece num ufanismo tortuoso contra “os gringos que querem tomar a Amazônia”. Nada parece mais eficaz do que criar uma ameaça externa para engordar nacionalismos de ocasião, que só favorecem aos mesmos de sempre. Se é disso que se trata, convém perceber que há um tipo de “gringo” que há muito está lá, em megaprojetos de multinacionais que expulsaram as populações locais com o apoio de sucessivos governos. Na ditadura, mas também na democracia.

Para compreender a Amazônia é preciso se arriscar à alteridade – e nada mais perigoso para quem quer manter seus privilégios do que experimentar outras possibilidades de estar no mundo

A Amazônia é devastada em nome de várias manipulações, concretas e simbólicas. Para que continue a servir aos interesses dos centros de poder, é preciso que o modelo de exploração persista. E, para que persista, quando o aquecimento global e a destruição do meio ambiente se tornam temas vitais no mundo, quando a questão da água ascende ao topo da pauta, é preciso forjar novos inimigos. É nesse contexto que os povos indígenas passam a ser vendidos à população, predominantemente urbana do país, como “entraves ao desenvolvimento”. Isso no discurso tanto de setores conservadores da sociedade quanto em falas oficiais de setores do atual governo.
Aqueles que pertencem à terra são convertidos em despertencidos, o sentido mais profundo de “entrave”, para que a Amazônia se mantenha no mesmo lugar de corpo para violação. Em nome de “interesses nacionais”, quando, de fato, o que se mascara como nacional são, historicamente, projetos de poder de grupos políticos específicos e projetos de lucro de grupos econômicos privados. Estes, fazem alianças circunstanciais ou permanentes para manter a lógica de espoliação intacta. Fizeram na ditadura, fazem na democracia. Sem que se estranhe o suficiente, porque a distância da Amazônia não é apenas geográfica. Para compreendê-la é preciso se arriscar à alteridade – e nada mais perigoso para quem quer manter seus privilégios do que experimentar outras possibilidades de estar no mundo.
Os povos indígenas resistem desde 1500, mas nesse século ampliaram sua voz, pelas possibilidades abertas pela internet, e passaram a divulgar suas narrativas múltiplas. Em comum, a resistência ao genocídio que segue em curso e ganhou roupagens mais sofisticadas. É também por isso que os ataques contra esses povos se acirraram, não apenas na forma de agressões físicas e destruição de aldeias, mas nos vários projetos que tramitam no Congresso e que significam, na prática, sua aniquilação física e cultural. Como não é mais possível silenciar a sua voz, é preciso transformá-los em inimigos. O inimigo não se escuta, diga o que disser, porque não lhe é reconhecida a legitimidade para dizer. Esse é o objetivo da bem sucedida propaganda em curso, que coloca os mais de 200 povos indígenas, habitantes também de outros ecossistemas além da Amazônia, como “entraves ao desenvolvimento” do Brasil. Por estarem no caminho das grandes obras, por estarem coletivamente sobre as terras cobiçadas para lucros privados.

Para que a Amazônia continue sendo território de espoliação é preciso vender ao país a imagem dos povos indígenas como entraves ao desenvolvimento

Nada é mais autoritário do que dizer ao outro que ele não é o que é. Essa também é parte da ofensiva de aniquilação, ao invocar a falaciosa questão do “índio verdadeiro” e do “índio falso”, como se existisse uma espécie de “certificado de autenticidade”. Essa estratégia é ainda mais vil porque pretende convencer o país de que os povos indígenas nem mesmo teriam o direito de reivindicar pertencer à terra que reivindicam, porque sequer pertenceriam a si mesmos. Na lógica do explorador, o ideal seria transformar todos em pobres, moradores das periferias das cidades, dependentes de programas de governo. Nesse lugar, geográfico e simbólico, nenhum privilégio seria colocado em risco. E não haveria nada entre os grandes interesses sem nenhuma grandeza e o território de cobiça.
Quando alguém, mesmo em círculos letrados, afirma que “sem Belo Monte não vai dar para assistir à novela das oito ou entrar no Facebook”, ou brada que “índio tem terra demais”, está cometendo muitas impropriedades. Mas está também mantendo vivo o ideário da ditadura sobre a Amazônia e os povos da floresta. No momento em que o Brasil disseca o golpe que completou 50 anos, tão importante quanto jogar luz sobre o passado é compreender o que dele permanece entre nós – com a nossa estreita colaboração.

Mulheres / Milla Jovovich

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Milla Jovovich 
by Inez van Lamsweerde & Vinoodh Matadin 
for Marella 
Spring/Summer 2012 Campaign


Milla Jovovich by Inez van Lamsweerde & Vinoodh Matadin for Marella Spring/Summer 2012 Campaign





Alastair Taylor / Mulheres

Brangelina / Álcool, maconha e descontrole de Pitt levaram Jolie a pedir o divórcio

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Angelina Jolie e Brand Pitt

"Brangelina"

Álcool, maconha e descontrole de Pitt levaram Jolie a pedir o divórcio

Processo envolve milhões de dólares, já que o casal ‘Brangelina’ era um dos mais poderosos de Hollywood


PABLO XIMÉNEZ DE SANDOVAL
Los Angeles 21 SET 2016 - 09:12 COT

Na Corte Superior da Califórnia, seção Los Angeles, o processo é identificado apenas como BD646058. Para o resto do mundo, trata-se da ação de divórcio apresentada na segunda-feira por Angelina Jolie contra Brad Pitt. Dez páginas de um formulário impresso, nas quais o casal mais famoso e poderoso de Hollywood detalha sua separação após 12 anos de vida sob os holofotes e seis filhos em comum. No item 5 do formulário, divulgado na terça-feira pelo portal de fofocas TMZ, está marcada a alternativa 1: “Diferenças irreconciliáveis”. Angelina Jolie e Brad Pitt se separaram na quinta-feira da semana passada, segundo o documento apresentado pela famosa advogada Laura Wasser, especialista em divórcios hollywoodianos. No item 6, Jolie pede a custódia física dos seis filhos, com custódia legal conjunta e autorização para que Pitt visite as crianças. Ela não solicita ajuda econômica do ex-marido.
“Esta decisão foi tomada pelo bem da família. Ela não vai fazer comentários e pede privacidade à família neste momento”, limitou-se a comentar outro advogado de Jolie, Robert Offer.

Nos documentos judiciais, Jolie comunica ao tribunal que há uma série de bens separados que estão por determinar. Como atores, diretores e produtores, Jolie e Pitt – conhecidos como Brangelina pela força da sua marca como casal – estão entre os profissionais mais bem pagos de Hollywood. A revista Forbes calcula que, juntos, obtiveram desde 2004 uma renda de 555 milhões de dólares (1,8 bilhão de reais, pelo câmbio atual). Pitt, segundo esse cálculo, teria sido responsável por 315,5 milhões de dólares desse total, e Jolie pelos 239,5 milhões restantes. Só no ano passado, Pitt ganhou 31,5 milhões de dólares.
Nas primeiras 24 horas após a divulgação da notícia, “fontes próximas ao casal” citadas na imprensa especializada disseram que a razão principal do divórcio não foi uma terceira pessoa, e sim a maneira como Pitt, de 52 anos, se relaciona com os filhos. Segundo essas fontes, Pitt tem problemas para se controlar quando fica irritado. Ainda de acordo com esta versão, a primeira a ser difundida e cuja única credibilidade repousa na marca TMZ, Pitt continua consumindo maconha e álcool, hábitos sobre os quais se falou amplamente em seus anos de astro juvenil.
Pitt não respondeu publicamente às acusações. Sua reação foi uma breve declaração à revista People: “Estou muito triste com este assunto, mas o que mais importa agora é que nossos filhos estejam bem. Peço gentilmente à imprensa que lhes deem o espaço que precisam neste momento difícil”.

O divórcio do casal Jolie-Pitt já é a principal notícia de celebridades do ano. Juntos, eles têm um incrível dom de vender revistas. Não há semana em que não estejam em alguma capa disparatada das publicações de fofocas dos Estados Unidos. Numa semana, ela estava a ponto de morrer e ele a abandonou. Na seguinte, ele reatou com Jennifer Aniston e Jolie enlouqueceu de ciúmes. Ainda nesta semana, em outra revista, ele havia abandonado a sua avó moribunda na miséria. Assim viveram por mais de uma década.
O casal se conheceu em 2004, durante as filmagens de Senhor e Senhora Smith. A ideia de colocá-los juntos em um filme romântico de aventuras era quase uma obviedade. Aos 41 anos, Pitt continuava sendo o maior sex symbol da década, depois de ter derreter corações nos anos noventa, em títulos como Thelma e LouiseLendas da PaixãoEntrevista Com o VampiroSeven – Os Sete Crimes Capitais e Clube da Luta. Ela, nascida em Hollywood (seu pai é o ator John Voight), 12 anos a menos que Pitt, havia recebido um Oscar como atriz coadjuvante por Garota, Interrompida e, acima de tudo, se tornara uma das atrizes mais valorizadas da indústria depois de interpretar a heroína Lara Croft em Tomb Raider.
Jolie e Pitt foram vistos juntos em público pela última vez em 12 de julho, tomando o café da manhã num restaurante de West Hollywood. Com seis filhos (sendo três adotivos), foram durante uma década a família real de Hollywood, com uma bem cuidada imagem de família feliz e casamento duradouro, em contraste com a habitual volatilidade nas relações entre famosos. Uma história que se estilhaçou nesta segunda-feira.



Segundo a Internet, Jennifer Aniston é a pessoa mais feliz do planeta neste momento

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Segundo a Internet, Jennifer Aniston é a pessoa mais feliz do planeta neste momento

Twitter está repleto de memes da atriz sobre a reação que pode ter tido ao saber que Angelina Jolie pediu divórcio de Brad Pitt





Caos total na internet. O divórcio do ano, da década e possivelmente do séculopegou todo mundo de surpresa (só um tabloide, o US Weekly, insinuou sutilmente a ruptura meses atrás, alegando que Jolie queria concentrar-se numa possível carreira política) e a internet reagiu do jeito que sabe fazer: com GIFs, claro. Não é para menos. Brangelina já estava aí antes dos Kimye e dos (efêmeros) Swiddleston e Cake. Mais do que um casal, era praticamente uma entidade sagrada (acompanhada por sua tribo de seis filhos). Mas, se tem alguém que sai com mais força desse divórcio, aos olhos dos internautas, é Jennifer Aniston. A ex de Pitt teve que aguentar durante anos a narrativa de ser conhecida nos tabloides como Sad Jen (Triste Jen) e, apesar de levar uma vida plena – com ela mesma disse aqui –, foi alvo de constantes rumores de depressão porque Brad supostamente a traiu com Jolie durante as gravações deSr. e Sra. Smith. Muitas feministas famosas, como Andi Zeisler, exigiram que Aniston fosse excluída de qualquer hipótese sobre esse divórcio, mas não ficamos surpresos ao encontrar memes e tuítes como estes:

 Primeiras reações de Jennifer Aniston



Jennifer Aniston ao vivo

Jennifer Aniston neste momento

Brad Pitt e Angelina Jolie divórcio. Você ouve Jennifer Aniston: "Eu te disse e agora se f***".







Brad Pitt & Angelina Jolie split. Jennifer Aniston is heard muttering "I told you so and now f*ck off". 

Na casa de Jennifer Aniston


Conectamos en directo con la casa de Jennifer Aniston

Jennifer Aniston neste momento

Steven Klein / Brad Pitt e Angelina Jolie

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Brad Pitt e Angelina Jolie
Fotos de Steven Klein


























































































Angelina Jolie e Brad Pitt se separam

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Brad Pitt e Angelina Jolie

Angelina Jolie e Brad Pitt se separam

Portal de notícias TMZ diz que a atriz solicitou o divórcio após 12 anos de relação e seis filhos em comum



PABLO XIMÉNEZ DE SANDOVAL
Los Angeles 20 SET 2016 - 18:46 COT


Um dos casais mais sólidos de Hollywood aparentemente não era tão sólido assim. Angelina Jolie e Brad Pitt se separaram. Os dois atores se casaram em agosto de 2014 na França, após 10 anos de relacionamento. São ao todo 12 anos de convivência e seis filhos em comum. Segundo o portal TMZ, a iniciativa da separação partiu de Angelina Jolie, que nesta segunda-feira apresentou um pedido dedivórcio alegando “diferenças irreconciliáveis”.
TMZ, que soltou a bomba noticiosa na tarde desta terça, é o mesmo site que anunciou a morte de Michael Jackson e o divórcio de Antonio Bandeiras e Melanie Griffith. Um minuto depois da publicação, o advogado de Jolie, ganhadora de um Oscar honorário em 2013, confirmou a notícia. “Esta decisão foi tomada pensando no bem estar da família. Ela não emitirá nenhum comentário a respeito. E pede respeito e privacidade para sua família”, disse Robert Offer, representante da atriz, em nota.

Na ação de divórcio, a Angelina Jolie de 41 anos pleiteia a custódia dos seis filhos do casal. “Ela disse que Brad Pitt terá a oportunidade de visitar as crianças. Porém, há um ponto importante a destacar: ela não quer compartilhar a custódia dos seus filhos com Brad”, informa o portal. O documento especifica que o casal se separou na última quinta-feira. Os atores têm três filhos biológicos e três adotados. Seu contrato pré-nupcial inclui uma cláusula determinando que os filhos do casal ficariam com a atriz de Malévola, desde que a separação decorresse de uma infidelidade de Pitt. O acordo especifica também que, depois da separação, cada um ficará com a fortuna que já tinha antes do casamento, e que o dinheiro gerado durante o relacionamento será dividido em partes iguais entre os seis filhos.
Os rumores sobre a separação de Angelina Jolie e Brad Pitt, um dos casais mais famosos, poderosos e milionários da indústria do entretenimento, se repetiam praticamente desde o início do relacionamento deles, durante a filmagem deSenhor e Senhora Smith (2005). Nas últimas semanas, esses boatos se intensificaram, já que há muito tempo eles não são vistos juntos.
EL PAÍS



Posters / Mr. & Mrs. Smith

Assédio virtual de Marion Cotillard, vítima colateral do divórcio de Brangelina

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Marion Cotillard

Assédio virtual de Marion Cotillard, vítima colateral do divórcio de Brangelina

Leitura machista feita nas redes é que a culpa pela ruptura é dela ou de outras mulheres


VERNE
21 SET 2016 - 18:55 COT





Marion Cotillard

O anúncio do divórcio entre Angelina Jolie e Brad Pitt já gerou mais de 2,5 milhões de menções no Twitter. Todo mundo tinha algo a dizer sobre isso, como se conhecessem os dois pessoalmente. Entre as especulações infundadas sobre as causas da ruptura alguns apontaram para uma hipotética infidelidade dele com a atriz francesa Marion Cotillard. As hordas de usuários não demoraram para começar uma campanha de assédio virtual nos perfis dela nas redes sociais, especialmente no Instagram.






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Me esta dando bastante vergüenza los comentarios que está recibiendo Marion Cotillard en Instagram 🙃

“Está arrasada, não é verdade”, disse um representante de Cotillard, que negou os rumores sobre essa suposta infidelidade durante uma filmagem. “Essas alegações falsas a quebraram completamente”, insistiu depois de lembrar que a francesa tem um companheiro com quem tem um filho e está esperando outro.
As redes não se importaram, já tinham dado seu veredicto e a campanha de assédio já tinha começado no Instagram, embora também havia quem a defendia. Os usuários foram até as fotografias publicadas por ela até sete semanas atrás para insultá-la através dos comentários. Fizeram o mesmo em sua conta oficial de Facebook, embora não seja usada desde 2008.
Esse tipo de ataque em massa com viés machista pode chegar a destruir a vida da vítima, como aconteceu com a jovem italiana que cometeu suicídio na semana passada. Mas voltando ao caso desses famosos, na feira de especulações sobre o motivo da separação de Jolie e Pitt, a maioria dos rumores apontou sempre para um lado: as mulheres.
The Atlantic fez o exercício de analisar várias notícias publicadas sobre o assunto. Diziam que Jolie bebe vinho diariamente, que quase não come, que fuma muito, que tinha deixado Pitt aterrorizado por seus problemas de saúde, que era muito ciumenta, etc. Além disso, se era preciso procurar causas externas, todas tinham a ver com o perfil sedutor de várias mulheres (Cotillard, Lizzy Caplan, Gwyneth Paltrow). Como se, caso tivesse ocorrido uma infidelidade, Pitt tivesse sido uma vítima, um sujeito passivo, também reflete Mic.
Depois de se conhecer a notícia na terça-feira, muitas das reações nas redes imaginaram a antiga namorada de Pitt, Jennifer Aniston, celebrando o momento como uma doce vingança. Aliás, houve quem a apontou também como possível culpada como vingança contra Jolie pela suposta infidelidade que há 12 anos teria sido o início de seu relacionamento com Pitt. Em meio à avalanche de tuítes nesse sentido, houve quem considerou necessário esclarecer alguns conceitos:



Todos hablan de "karma" y estuvieron juntos 12 años. Señores Jennifer ya lo superó, ustedes también deberían hacerlo

Todos falam de “karma” e ficaram juntos por 12 anos. Senhores, Jennifer já superou, vocês também deveriam fazer o mesmo.



brangelina: are divorcing
ppl: must be jennifer aniston's or marion cotillard's fault!

yes let's blame every woman he ever interacted with


brangelina: estão se divorciando
pessoas: deve ser culpa de jennifer aniston ou marion cotillard.
sim, vamos culpar todas as mulheres com que ele se relacionou na vida

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